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terça-feira, setembro 30

2ª Turma nega aplicação de insignificância para operadores de rádio clandestina em Salvador (BA)

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) negou Habeas Corpus (HC 123074) impetrado pela Defensoria Pública da União (DPU) em favor de dois réus acusados de operar, de forma clandestina, emissora de radiodifusão sonora nas imediações do Aeroporto Internacional de Salvador (BA). 

A DPU pedia a aplicação do princípio da insignificância, uma vez que a rádio operava em baixa potência. Mas os ministros entenderam que a rádio pode potencialmente interferir nas frequências de radiodifusão das redondezas, cujos canais e frequências foram indicados na denúncia. 

O juiz da 17ª Vara Federal Criminal da Bahia rejeitou a denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF), com base no delito tipificado no artigo 183 da Lei 9.472/1997, ao argumento de que a perícia in loco realizada pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) comprovou que a potência da Rádio Planeta FM era de 23,5 Watts, com alcance médio de dez quilômetros. 

O magistrado considerou que a baixa potência o forçava a aplicar, ao caso, o princípio da insignificância, em vista do ínfimo perigo causado pelas atividades de telecomunicações. 

O MPF recorreu ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), que reformou a sentença de primeiro grau.

O acórdão daquela corte apontou que o crime em questão se consuma no momento em que realizada a conduta prevista, qual seja, a de desenvolver atividade de telecomunicações sem autorização do órgão competente para tanto, nada havendo tratado sobre a potencialidade lesiva do equipamento. Por isso, não há que se falar na possibilidade jurídica de aplicação, ao caso, do princípio da insignificância. 

Essa decisão foi mantida pelo Superior Tribunal de Justiça, o que motivou a Defensoria Pública a impetrar HC no STF. 

O caso, relatado pelo ministro Teori Zavascki, foi julgado pela Segunda Turma na sessão desta terça-feira (23). Para o relator, o fato de operar em baixa potência não permite, de plano, a aplicação do princípio da insignificância. 

Analisando o caso concreto, o ministro constatou que a rádio se localizava nas proximidades do aeroporto internacional da capital baiana, com aparente potencial para interferir e causar ruídos nas frequências de radiodifusão FM e de telefonia. Para ele, a efetiva potencialidade só poderá ser apurada no curso da ação penal. 

Ao acompanhar o relator, a ministra Cármen Lúcia lembrou que a jurisprudência da Turma nessa matéria - aplicação do princípio da insignificância em crimes de radiodifusão clandestina de baixa frequência - é no sentido de se analisar caso a caso, para apurar a potencialidade do fato tido como delituoso. E, no caso, a ministra também entendeu haver possibilidade de potencial lesividade. 

Os ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello também acompanharam o relator, pela denegação da ordem de habeas corpus. 

Processos relacionados: HC 123074 

Fonte: Supremo Tribunal Federal



OAB desaprova projeto que define o crime de terrorismo

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) manifestou-se, por unanimidade, pela rejeição do Projeto de Lei do Senado (PLS) 499/2013 que define o crime de terrorismo. A proposta para criação da Lei Antiterrorismo, elaborada pela Comissão Mista de Consolidação das Leis e Regulamentação da Constituição, tramita no Congresso Nacional desde novembro de 2013.

O Senado ainda busca um texto de consenso, mas inicialmente o PLS 499/2013 prevê, para o crime de terrorismo,  penas que vão de 15 a 30 anos de prisão. No caso de mortes, a pena seria de 24 anos de reclusão e, se o terrorista usar explosivos, armas químicas ou outros recursos de destruição em massa, o tempo na cadeia pode aumentar em um terço. Outro projeto, o PLS 08/2013, do senador licenciado Armando Monteiro (PTB-PE), tipifica o vandalismo.

OAB

No entendimento da OAB, tanto na legislação comparada como nos tratados e convenções sobre terrorismo, as condutas criminalizadas dizem respeito ao ataque às instituições democráticas (Parlamento, Judiciário), com ofensas aos postulados da democracia, motivado por questões religiosas, políticas, étnicas e outras.

O relatório do Conselho, divulgada nesta segunda-feira (29), afirma que não há justificativa para que se promova a tipificação da conduta em lei específica. Lembra ainda que no projeto do Novo Código Penal (PLS 236/2011) a definição do crime de terrorismo já está em discussão.

De acordo com o documento enviado à Presidência do Senado, a tentativa do Congresso Nacional em tipificar o terrorismo foi feita “às pressas, valendo-se de um Direito Penal de emergência, atropelando procedimentos e evitando um amplo debate do tema com a sociedade civil organizada, buscando criminalizar a conduta dos movimentos sociais”.

Para a OAB o projeto é uma resposta às manifestações populares de junho de 2013 , que se intensificaram no “evidente despreparo” dos policiais na repressão aos protestos, culminando na morte do cinegrafista  da TV Bandeirantes, Santiago Andrade, em 10 de fevereiro deste ano.

O relator Evânio José de Moura Santos avalia  que não se configuram como terrorismo os atos praticados pelos manifestantes. A morte do jornalista, agressão física a policiais, depredação do patrimônio público ou privado e o uso de explosivos podem ser enquadrados como homicídio, lesões corporais, dano e dano qualificado, porte ou posse de artefato explosivo incendiário.

Discussão

O senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) comemorou o posicionamento da OAB. Para ele não existe necessidade de uma lei para classificar o terrorismo no Brasil, pois o objetivo seria unicamente criminalizar as manifestações populares e ameaçar direitos já garantidos, como o da liberdade de expressão.

- Fico feliz que a OAB esteja ao lado do bom senso. Espero, inclusive, que com esse posicionamento e outra composição do Senado, a partir do ano que vem, esse projeto seja devidamente arquivado - afirmou.

O texto do PLS 499/2013 deverá sofrer alterações para ser votado na forma de um substitutivo. Durante as discussões, o senador Romero Jucá (PMDB-RR), relator da matéria na comissão mista, defendeu a proposta como a mais adequada para nortear a elaboração do novo texto.

Já os senadores Humberto Costa (PT-PE) e José Pimentel (PT-CE), líder do governo no Congresso, consideraram que a definição prevista no projeto do novo Código Penal é mais precisa, menos subjetiva.

Ainda não existe no ordenamento jurídico brasileiro a definição de terrorismo, crime que a Constituição repudia, estabelecendo como hediondo, sendo inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

Após o atentado de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, foi editada a Convenção Interamericana contra o Terrorismo, ratificada pelo Brasil.


Fonte: Agência Senado

Programa Conhecendo o MP: Crimes de bagatela

Promotor de Justiça João Pedro de Freitas Xavier, que coordena o Centro de Apoio Criminal do Ministério Público gaúcho, fala sobre os crimes de bagatela. Vem ganhando repercussão decisões judiciais relativas ao reconhecimento ou não do "princípio da insignificância" ou "da bagatela". Ele tem o sentido de afastar a própria tipicidade penal, não considerando o ato praticado como um crime.



 

Lançado guia com medidas para garantir proteção de quem denuncia ato de corrupção

Está disponível no portal do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o Guia para o Uso do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) na Proteção de Denunciantes de Atos de Corrupção. O documento apresenta recomendações gerais para instituições públicas e órgãos de defesa dos direitos humanos sobre como garantir a integridade de testemunhas e jornalistas que denunciam atos corruptos. Também reúne informações sobre quais são as garantias e estruturas disponíveis dentro do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos para essas pessoas. Clique aqui para acessar o manual.

A cartilha, lançada na última semana pelo Ministério da Justiça, integra os trabalhos da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla), composta por diversos órgãos, entre os quais o CNJ, com o objetivo de aperfeiçoar a prevenção e o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Para a conselheira Luiza Frischeisen, que representa o CNJ na Enccla, o guia é um bom instrumento para procuradores, juízes, gestores, e todos aqueles que desejam contribuir com o combate à corrupção. “As pessoas devem saber o que fazer para denunciar esses crimes, como fazer e, principalmente, que existem formas de denunciar e de garantir a integridade desses denunciantes e testemunhas, inclusive no âmbito internacional”, explica.

O documento apresenta as obrigações internacionais e os deveres dos Estados para impedir represálias aos denunciantes e mostra em que casos é possível recorrer ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH). O SIDH é composto pela Comissão (CIDH) e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que fiscalizam a forma como os países integrantes da Organização dos Estados Americanos (OEA) cumprem as obrigações impostas pelo Direito Internacional nessa área.

A CIDH é um órgão quase judicial que pode conhecer denúncias, ordenar medidas cautelares, emitir relatórios, realizar audiências e visitar países com o intuito de garantir o cumprimento de acordos internacionais ligados aos direitos humanos. Já a Corte é um tribunal internacional que soluciona litígios entre Estados e supostas vítimas.

Medidas de proteção – De acordo com o texto do manual, elaborado pelo professor de direitos humanos da Faculdade de Direito da Universidade do Chile, Cláudio Nash Rojas, a princípio, uma denúncia deve originar na concessão imediata de algumas medidas básicas de proteção, como assessoria legal e a garantia de confidencialidade do denunciante. Entre as normas relevantes para proteção dessas pessoas, está o tempo de proteção de uma testemunha, que deve durar pelo período que persistir o perigo, assim como a proteção policial e a mudança de endereço, caso seja necessário.

Integração – A Enccla foi criada em 2003 para articular os esforços de órgãos públicos que previnem, fiscalizam e combatem a corrupção e a lavagem de dinheiro. Sob coordenação da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, cerca de 70 órgãos do Poder Executivo, do Legislativo e do Judiciário, além do Ministério Público, traçam metas anuais para aperfeiçoar as políticas públicas de combate aos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.

Lançamento – Participaram da cerimônia de lançamento do guia, na última semana, o vice-presidente da Corte Interamericana, Roberto Caldas e o delegado Ricardo Saadi, do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI). Desde a criação do órgão, há 10 anos, já foram repatriados R$ 40 milhões desviados por atos de corrupção ou lavagem de dinheiro.

Os palestrantes reforçaram a obrigação do Estado de estimular quem pretende delatar atos de corrupção, assim como garantir a integridade dos denunciantes e das testemunha, e criar estruturas que impeçam represálias e o risco de vida de quem decidiu revelar crimes contra a administração pública.

“A corrupção atinge o pilar da igualdade entre os cidadãos; viola o direito ao serviço público, destrói a confiança e afasta os cidadãos da esfera pública”, afirmou o secretário Nacional de Justiça, Paulo Abrão, durante a cerimônia de lançamento da cartilha.

Fonte: Agência CNJ de Notícias

Tortura em Jaguarão: Recebida a denúncia contra envolvidos e determinada a prisão de PM

O Juiz Antônio Carlos de Castro Neves Tavares, da Vara Judicial da Comarca de Jaguarão, recebeu denúncia do Ministério Público (MP) contra Policiais Militares acusados de práticas de tortura e decretou a prisão preventiva da PM Iara Luíza Vitória. 

A policial foi encaminhada ao Batalhão de Guarda da Polícia Militar, em Porto Alegre. 

Já os outros PMs, Osni Silva Freitas, Júlio Cezar Souza Vieira, Edison Fernandes Pinto, Everton Radde da Silva e Rodrigo de Freitas Neumann permanecem presos.

Fabiano Miranda Caetano, apontado como comparsa, está em liberdade mediante o cumprimento de uma série de medidas, inclusive o uso de tornozeleira. 

Ele são acusados de efetuar ameaças e cometer abuso de autoridade contra Dionathan Pedroso Pizani, José Francisco Telles Teixeira de Mello e João Gustavo Borges Ribeiro. O processo está em fase de Instrução. 

Denúncia 

Os PMS e o comparsa são acusados por tortura e coação a cinco vítimas, sendo uma delas uma menor.

Segundo o MP, com a ajuda do comparsa Fabiano o objetivo dos PMs era que as vítimas informassem e se responsabilizassem por furto ocorrido no dia 6/9, na residência do policial Júlio César e da moto de Osni Freitas.

O grupo teria invadido invadido as casas dos suspeitos, algemando-os e cometendo agressões. Após os levaram para uma chácara, de propriedade de Júlio Cesar, em Santinha, interior de Jaguarão, onde cometeram novos atos de violência.

 Prisão preventiva 

Iara Luiza Vitória teve a prisão preventiva decretada, por haver indícios da participação dela nos eventos ocorridos na chácara. 

Testemunha a reconheceu como a mulher que foi até sua casa apresentando-se como delegada. 

Relatório indica que durante a noite de sábado e domingo ela foi a única PM a utilizar viatura discreta, reconhecida por testemunhas como um dos veículos utilizados para a prática do delito. 

E há registro de câmeras de segurança da Santa Casa de Caridade de Jaguarão mostrando uma mulher descendo da viatura discreta e conduzindo a vítima Luiz Gustavo para atendimento. 

O magistrado considerou necessária a prisão para preservar a instrução criminal, para assegurar proteção aos depoentes. Isso porque a policial militar que teria tomado parte nos eventos denunciados tem notadamente conhecimento da localidade, de seus cidadãos e de seus hábitos, podendo atuar incisivamente de modo a dificultar a obtenção de prova e o com andamento da investigação em curso. 

A PM deverá permanecer encarcerada no Batalhão de Guarda da Polícia Militar, em Porto Alegre. 

O Juiz registrou que há fundados indícios de que policiais em serviço ou fora dele, vestidos com a farda ou em roupas civis, adentraram as casas de cidadãos locais, em horário noturno, infringindo o art. 5º, inciso XI da CRFB/1988, retirando cidadãos do seio de sua família e da segurança do lar, para que lhes fosse conferido tratamento degradante e agressões físicas cruéis com a finalidade de informar sobre fatos e, quiçá, assumir a autoria de pretensos delitos sobre os quais pairam dúvidas de sua ocorrência e, mais ainda, de sua autoria. 

Tais atos praticados em completa dissonância com a CRFB/1988, Pacto de San José da Costa Rica e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. 

Medidas cautelares e tornozeleira

 Para Fabiano Miranda Caetano foram impostas medidas cautelares. 

Determinou o uso de tornozeleira eletrônica para monitoramento e que compareça mensalmente, em juízo, para justificar as atividades profissionais efetuadas e manter o endereço atualizado. Determinou que deve haver recolhimento domiciliar à noite e nos fins de semana das 7h às 19h, entre segunda-feira e sexta-feira, devendo permanecer em casa durante todo o sábado e o domingo.

 O processo estáestá em fase de citação dos acusados para resposta à acusação. 

Proc. 055/21400008345 (Jaguarão) 

Fonte: Tribunal de Justiça do Estado de Rio Grande do Sul


domingo, setembro 28

Falhas na rede de proteção: Caso Bernardo e a Omissão de todos nós (erros, omissões e arrependimentos)

Por Adriana Irion


BERNARDO UGLIONE BOLDRINI, 11 anos, percorreu o ciclo completo da chamada rede de proteção à infância de Três Passos. Mesmo assim, sofreu maus-tratos até ser assassinado pela madrasta com a suposta anuência do pai, em 4 de abril. Quase seis meses depois, os passos dados pelo menino ainda reverberam. Perturbam quem tinha o dever legal de agir (Conselho Tutelar, escola, Ministério Público) e angustiam uma comunidade que se pergunta: o que poderia ter sido feito para protegê-lo? Muitos admitem arrependimento, seja pela incapacidade de enxergar uma violência não expressa em marcas no corpo, seja por ver uma barreira na condição financeira e social da família. Alegam que a rede tem limite de atuação. Mas se Bernardo chegou sozinho até a última instância desse sistema a Justiça , e nem isso foi suficiente, o que fazer? Resta refletir para costurar uma rede com menos brechas.

Bernardo, se você fosse personagem de uma história, qual gostaria de ser?

– Nenhum. Ninguém me conta histórias!

A conversa de Bernardo Uglione Boldrini com uma médica amiga de sua família ocorreu muito antes de o menino franzino de 11 anos tornarse personagem da mais dolorosa história que Três Passos poderia contar ao país.

A de uma criança de classe média alta, órfã de mãe, maltratada em casa, que mendigava amor, comida e roupas pelas ruas da cidade, que foi ao fórum sozinha pedir ajuda e acabou morta e enterrada numa cova rasa pela madrasta, Graciele Ugulini, supostamente com o conhecimento do pai, o médico cirurgião Leandro Boldrini.

A história que Três Passos narra hoje é permeada por culpa e questionamentos. O que cada um poderia ter feito melhor? A comunidade reclama ação mais contundente por parte das autoridades que têm o poder de investigar e de tirar uma criança de casa. Agentes da rede de proteção queixam-se de que a população não denuncia.

– A gente não está procurando culpados, mas um pouco cada um se omitiu. Nos sentimos em luto quando aconteceu. Nos sentimos muito mal, pensamos o que faltou a gente fazer mais, o que aconteceu? – questiona-se Deborah Granich, uma das conselheiras tutelares que atenderam o menino.

Os gritos de socorro de Bernardo foram muito além do que os 31 gravados em áudio e vídeo pelo próprio pai durante uma briga em casa, em um sábado de agosto do ano passado. A única coisa que o filho de Boldrini não fez foi verbalizar a tortura que sofria. O resto estava lá para ser visto.

Bernardo não tinha as chaves de casa. Vivia sempre na rua. Insistia em dormir na casa de colegas. Precisava ser acordado pela secretária da escola para não perder aula. Tinha dificuldades de aprendizado. Fazia temas e trabalhos com famílias amigas ou até com a secretária da clínica do pai. Não podia usar a impressora em casa. Não podia usar a piscina, nem brincar com a irmã. Não tinha janta, ia para escola sem lanche. Tinha sinais de falta de higiene pessoal. Andava malvestido – costumava trajar manga curta em dias frios. Pai e madrasta não participavam das atividades escolares, sequer foram na Primeira Comunhão. Um código de convivência o impedia de falar com a madrasta. Era proibido de mencionar a mãe, morta em 2010. Carregava na mochila e tomava sozinho três medicações controladas. No final de 2013, aparentava desnutrição. Em 2014, pediu ao juiz para trocar de família.

Mas ninguém supôs que o menino de classe média alta, filho do mais famoso médico da cidade e enteado de uma enfermeira, estava sob perigo intenso. É o que aparece nas entrelinhas de depoimentos prestados à polícia depois da morte de Bernardo e em conversas sempre interrompidas pelo choro.

– A gente analisa que essas pessoas (um médico e uma enfermeira) estão ali para salvar vidas, não destruir. A gente tem eles como referência – comenta Isoldi Schumann, conselheira tutelar.

Quando as primeiras suspeitas chegaram ao Conselho Tutelar de Três Passos, uma colega de Isoldi e de Deborah pediu para não atuar na apuração: tinha um familiar em tratamento com Boldrini e havia trabalhado com Graciele.

– É o problema de se enxergar as pessoas pela ótica da profissão que exercem, e aqui, no Interior, a gente veste a camisa da profissão. Todos te veem na rua como a jornalista, a psicóloga, a assistente social. Ninguém te imagina com dois discursos, que tu cuide teus pacientes e não cuide de teus dependentes, teus afetos. As pessoas não queriam se intrometer nessa família – analisa a psicóloga Ariane Schmitt, amiga de Boldrini.

Aquele que parece ter sido o primeiro ente público a se preocupar com o comentário generalizado na cidade de que Bernardo era negligenciado, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), agiu, mas não sem um certo temor.

– Imagina nossa situação: ele (Boldrini) poderia nos processar. Dizer “o que essas mulheres estão fazendo aqui?” Ele poderia. Nós não tínhamos amparo legal para estar lá. Somos órgão de atendimento. Não somos órgão de averiguação, com poder de intervenção. Esse poder é todo do Conselho Tutelar – conta Raquel Raffaelli, psicóloga do Creas, que é ligado à prefeitura de Três Passos.

Ela e a colega Juliana de Quadros, assistente social, contataram o Conselho em busca de “suporte legal” para atuar. Juliana esteve com um conselheiro no Colégio Ipiranga para ouvir Bernardo, em julho de 2013.

– Ele estava meio abatido, mas não falou em maus-tratos – recorda Nestor Weschenfelder, do Conselho Tutelar.

Creas e Conselho procuraram o pai em mais de uma oportunidade. Boldrini foi resistente à abordagem, segundo registros. Também pediram uma avaliação da escola sobre o menino. Entre julho, quando houve as visitas, e novembro de 2013, quando comentários sobre o estado de abandono de Bernardo se intensificaram, o caso não teve andamento.

– É importante a sociedade se posicionar. Sem denúncia formal, nosso poder de trabalho diminui muito. Só tínhamos comentários (em julho de 2013). Nossa postura foi intervir e aguardar. Depois do que ocorreu, a gente revisou, revisou e revisou na nossa mente. Qual a conclusão: nós trabalhamos com situações de violência. E essa situação não se confirmava. Como é que íamos intervir? O Creas fez mais do que é seu trabalho. Quem apura é o Conselho, a polícia. A rede tem um limite, tem que respeitar o espaço do outro – sustenta Raquel.

Em uma das anotações do Conselho Tutelar, foi registrado à mão: “Fomos no consultório Dr. Boldrini e Colégio Ipiranga. Sobre seu filho Bernardo, conversamos também com a Psicóloga Denise (do Colégio Ipiranga) sobre ele, esperar decisão da escola sobre o caso”.

O Colégio Ipiranga, onde Bernardo estudou desde pequeno, é reticente hoje ao falar do caso. O diretor Nelson Antônio Gabriel Weber garante que “valores estão sendo trabalhados” com os alunos.

– Questões de família, da vida, de amizade, os valores são tão amplos, a valorização do ser humano, coleguismo, fraternidade. Isso faz parte do nosso dia a dia – comenta.

E em relação aos problemas que Bernardo apresentou durante anos, como dificuldades de aprendizado, falta de lanche a ponto de se tornar alvo de brincadeiras e ausência da participação da família?

– O Conselho apareceu aqui. Não sei precisar exatamente, sei que o contato ocorreu. O Conselho Tutelar tinha conhecimento. Tudo foi conversado. O Bernardo gostava de estar na escola, era acolhido, tinha o carinho de todos. Se todos tivessem dado a parcela que a escola deu... – responde o diretor do Colégio Ipiranga.

O conselheiro tutelar Nestor garante que o Colégio Ipiranga nunca fez registro sobre problemas do aluno, até ser procurado pelo órgão. Em depoimentos à polícia depois do crime, a coordenadora pedagógica, Simone Müller, e a psicóloga do Ipiranga, Denise Escher, discorreram sobre dificuldades do menino, a carência de atenção da família, a falta de lanche, de jantar, os problemas que ele dizia ter com a madrasta. Tudo era de conhecimento da comunidade escolar.

Bernardo chegou a virar alvo de brincadeira. A mãe de um colega dele contou à polícia: “Nesse ano, a turma da escola criou uma brincadeira, baseada no Bernardo Boldrini, de ‘mendigar o lanche’. Começou com Bernardo porque ele mendigava o lanche dos colegas”. Nada disso foi comunicado pela escola a órgãos de proteção à infância.

– Quem enxerga o problema não tem obrigação de resolvêlo, mas tem de comunicar, levar adiante. Este é um dever da escola – diz a juíza Vera Deboni, da 3ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre.

O Conselho Tutelar nega que a condição financeira da família de Bernardo tenha interferido na ação da rede de proteção.

– Para nós, todos são iguais. O Conselho não é só para pobre. Acontece que, talvez, aqueles gritos (os pedidos de socorro de Bernardo, gravados pelo pai e que vieram a público na semana da primeira audiência do caso), por que vizinhos não vieram denunciar no Conselho? Isso a gente pensa hoje. Por que não vierem denunciar? Medo? Como não ficamos sabendo? A babá, por que não veio falar para nós? É tudo coisa de se pensar hoje – questiona a conselheira Deborah.

O assunto da babá é, possivelmente, a informação mais concreta que surgiu sobre o risco de morte que Bernardo corria. A madrasta teria tentado sufocá-lo enquanto dormia. Ele acordou sem ar, assustado, e viu Graciele com um travesseiro na mão. Ela desconversou. O menino não esqueceu. Em novembro de 2013, ao encontrar na rua a ex-babá Elaine Teresinha Pinto, ele relatou o episódio. Preocupada, Elaine contatou familiares do garoto em Santa Maria.

Jussara Marlene Uglione, a avó materna de Bernardo, ficou quatro anos sem vê-lo, desde a morte da filha, em 2010. Tentou na Justiça garantir as visitas, mas desistiu em 2011, incomodada com a resistência de Boldrini. Avó e neto só voltaram a se ver nas férias de 2014.

– Eu lutei (pelo Bernardo) até onde pude – diz a avó materna.

Após avisar o Conselho Tutelar de Santa Maria, Marlon Taborda, advogado de Jussara, enviou ao Conselho de Três Passos e-mail falando da suspeita de tentativa de homicídio e das condições de abandono. Também telefonou para reforçar o assunto, que não despertou a atenção dos conselheiros.

Os conselheiros justificam não ter apurado porque os relatórios sobre Bernardo já estavam prontos, sendo encaminhados ao Ministério Público, acompanhados do e-mail vindo de Santa Maria.

– Isso foi para o MP. A polícia devia investigar. Não podemos responder ofício para advogado – diz Deborah.

– Se essas denúncias foram para Santa Maria, lá deveria ter sido feito registro policial – reforça Isoldi.

Em depoimento à polícia, Rosani do Nascimento, a conselheira que pediu para não trabalhar no caso de Bernardo, afirmou: “Que receberam, no final do ano passado, uma denúncia do advogado da avó de Bernardo de que este teria sofrido tentativa de asfixia, mas não deram muita importância porque já haviam falado com Bernardo e ele não havia relatado nada”.

Bernardo não relatou. Mas não foi perguntado sobre o episódio.

O coordenador do Conselho em Três Passos, Helio Eberhardt, esclareceu à polícia: “Que não sabe informar se algum dos conselheiros chegou a averiguar a denúncia da tentativa de asfixia. O depoente não tinha conhecimento, a não ser através do conteúdo do e-mail encaminhado pelo Conselho Tutelar de Santa Maria”.

Para a Polícia Civil, o assunto merecia investigação.

– Se tivesse chegado ao conhecimento da polícia a questão da asfixia, eu teria feito uma ocorrência, instaurado inquérito e ouvido as pessoas. Ouvido a Elaine (ex-babá), o Bernardo, a madrasta, o Leandro. Teríamos investigado, que é nosso papel – diz a delegada Caroline Bamberg Machado.

Até Bernardo sumir, a delegada não sabia, mas outro episódio envolvendo o menino passou despercebido pela polícia. Em meados de junho de 2013, Boldrini foi à delegacia mostrar um vídeo que fizera em seu celular. Nas imagens, Bernardo aparecia empunhando uma faca e um facão, e sofrendo provocações por parte do pai. Boldrini afirmou ao policial que queria se “precaver”. Não se sabe de quê. O policial apenas orientou o médico a procurar o Conselho Tutelar. Se tivesse feito uma ocorrência, o assunto passaria por análise da delegada. Só após o sumiço de Bernardo o policial informou o fato ocorrido 10 meses antes da morte do menino. A orientação do Departamento Estadual da Criança e do Adolescente é de que sempre seja feito o registro policial.

Caroline, responsável pela investigação do crime, lembra da última vez que viu Bernardo na escola:

– Eu estava caminhando e ele também, me olhando. Ele andava e me olhava. Hoje, penso se ele queria me falar algo.

Em agosto de 2013, o drama vivido por Bernardo mais uma vez esteve ao alcance de autoridades. Policiais militares estiveram na casa de Boldrini na noite em que o menino sofreu xingamentos, humilhações e ameaças veladas da madrasta, e berrou por socorro 31 vezes. Tudo foi registrado em um celular, acionado pela madrasta. No áudio, recuperado por peritos, é possível ouvir quando o médico diz que há policiais na frente da casa:

– Ó, eu faço tudo que é coisa certa. Tem polícia na frente da minha casa sábado de noite, né.

Não se sabe o que os PMs conversaram com Boldrini e se chegaram a ver e falar com Bernardo. Quando a gravação veio a público, na última semana de agosto, Zero Hora pediu detalhes sobre o atendimento, mas a Brigada Militar não tem registro, e abriu uma sindicância para apurar o que houve.

– Não foi ocorrência específica no Boldrini. Segundo estamos levantando, foi repassado para a sala de operações que havia “gritos próximo à caixa de água” e ponto (a sede da Corsan fica na frente da casa de Bernardo). Foi despachada viatura. Durante a averiguação, se bateu em residências perguntando quem ouviu, e se bateu na casa do Boldrini também. Estamos apurando quem foi atender e como foi o atendimento – diz o comandante do 7º BPM, major Diego Munari.

A “rede de proteção” voltou a se movimentar em novembro. Há informações de que naquele mês Bernardo esteve doente – com tosse, febril, com infecção respiratória. Por intervenção de uma amiga da família, foi levado por uma secretária de Boldrini a uma consulta com José Roberto Sartor, seu ex-pediatra. Foi ele que, ao saber do desaparecimento, disse à esposa: “Apagaram o guri”. Ao explicar a afirmação em depoimento à polícia, posteriormente, Sartor, amigo de Boldrini, contou que a fez em função da “situação de abandono” que Bernardo sofria.

Não há informações sobre o médico ter feito algum comunicado a órgãos de proteção à infância.

No final de novembro, em uma reunião com agentes da rede de proteção, a promotora Dinamárcia Maciel de Oliveira foi informada dos problemas com Bernardo. Solicitou relatórios. Foi só nessa época que os órgãos de proteção registraram em documento o que havia sido apurado em julho.

Em 6 de dezembro, inconformado com a falta de retorno do Conselho Tutelar sobre seus pedidos, o advogado Marlon Taborda, de Santa Maria, enviou e-mail ao Ministério Público descrevendo o estado de abandono de Bernardo e a suspeita de que a madrasta tentara sufocá-lo. O assunto não foi verificado pelo MP. Segundo a promotora, a ex-babá, que era uma das fontes da informação da tentativa de sufocamento, não foi procurada por não ser “testemunha presencial, não trabalhava há vários anos na casa” de Boldrini. Nesse período de apuração do MP, pai e madrasta não foram procurados, nem Bernardo.

Em 16 de dezembro, a promotora instaurou procedimento administrativo para apurar a situação de Bernardo. Foram adotados os trâmites burocráticos para a avó ser ouvida em Santa Maria sobre o interesse de assumir a guarda provisória do neto. Enquanto o expediente para possível troca de guarda tramitava no MP, ao retornar das férias passadas com a madrinha em Santa Maria, o filho único de Boldrini surpreendeu a Justiça ao ir sozinho ao fórum. Dia 24 de janeiro, Bernardo saiu da loja de Juçara Petry – onde era acolhido, se alimentava, brincava e fazia os temas –, caminhou 93 passos e falou firme ao guarda do fórum:

– Quero falar com o juiz.

Foi levado à sala do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cededica).

– Sou Bernardo, sou filho do médico Leandro Boldrini. Quero falar com o Dr. Fernando, o juiz – disse o menino a Matheus Menezes de Moura, coordenador de medidas Socioeducativas do Cededica.

– Mas por que tu queres falar com o juiz?

– Estou recebendo maus-tratos da minha madrasta e eu queria falar com o juiz a respeito disso.

– Calma, não é assim, vou te levar para o Conselho Tutelar.

– Mas eu queria falar com o juiz.

Convencido pela insistência de Bernardo, Matheus o levou ao juiz, que ouviu as queixas do menino e o encaminhou para falar com a promotora Dinamárcia.

O Ministério Público não registrou formalmente o que Bernardo contou ao longo de 40 minutos. A promotora achou “desnecessário”. Mas depois pediu ao Cededica que registrasse em ofício o que o menino contara lá, antes de ser levado para falar com o juiz e a promotora. Em palestra recente, em Santa Maria, Dinamárcia confirmou que a história não está registrada em nenhum lugar, “a não ser na minha mente e aqui (mostra o coração), como mãe que sou”. E recordou trechos do que Bernardo disse:

“A minha madrasta é uma bruxa, ela me xinga de tudo que você possa imaginar, e o meu pai dá razão para ela. Eu não tenho comida de noite porque não tem tata (empregada, babá). Eu tenho que tomar leite, comer banana, fazer ovo cozido ou então eu vou comer na casa dos meus colegas. Não tenho chave de casa, ela briga comigo e eu tenho que esperar 10 e meia da noite o pai chegar para eu poder entrar em casa. E eu não aguento mais isso. Deram todos os meus cachorros. E hoje foi a gota d’água, porque ela me chamou de veadinho e eu atirei um copo nela. O copo não pegou, mas eu estou com medo, estou cansado, eu nunca tinha feito isso de atirar um copo nela. Então eu não quero mais ficar naquela casa. Eu estou na casa da tia Ju (Juçara Petry). E eu queria te dizer assim, promotora: eu quero que a Ju e o marido dela sejam meus novos pais, porque eu quero ter pais com amor. ”

Ao retornar para a loja da “tia Ju”, Bernardo estava feliz.

– Ele me disse “pronto, falei tudo, bluft” – lembra Juçara, para quem Bernardo não detalhou a conversa com as autoridades.

Uma semana depois, a promotora ingressou com ação protetiva para troca provisória da guarda de Bernardo, sugerindo que ele ficasse com a avó materna. O expediente tomou por base relatórios produzidos em novembro pelo Conselho Tutelar, Creas e escola.

– A postura de Bernardo, ao procurar, sozinho, atendimento no Fórum, foi determinante para que esta promotora deliberasse pela necessidade de ajuizar, de pronto, uma Ação Protetiva em favor do menino, para fazer cessar a situação de vulnerabilidade à qual estava exposto. Havia uma criança, órfã de mãe, que buscava, solitária, outra família, noticiando-nos atos de abandono e exclusão por parte do pai e da madrasta – disse Dinamárcia em entrevista por e-mail.

Ao receber a ação do MP, o juiz Fernando Vieira dos Santos optou por marcar uma audiência de conciliação entre Bernardo e o pai, sem analisar os demais pedidos. Um deles era para que Bernardo e o núcleo familiar fossem submetidos a avaliação psicológica. A promotora não recorreu.

– Qualquer dos órgãos de proteção que tenha tido conhecimento do caso poderia realizar monitoramento espontâneo, não havia necessidade de determinação judicial. Adverti ele (Boldrini) a respeito das represálias ao menino; e não seria o acompanhamento da família que impediria que ocorressem, na medida em que a execução do delito revelou algum calculismo alheio a qualquer monitoramento – disse em entrevista por e-mail o juiz Fernando Veira dos Santos.

O Conselho Tutelar, que acompanhara o caso de Bernardo, só soube da audiência no fórum depois do sumiço do menino.

– Na audiência, é importante destacar, não estávamos tratando (até onde se sabia e nos era possível saber), com um pai “infrator”; longe disso. O pai era um cidadão sem maus antecedentes, com atividade conhecida na cidade e sob o qual pesava, “apenas” (não acho que isso seja pouco, tanto que ajuizei a ação), a notícia de ser negligente com o filho. Não havia notícia de violência contra Bernardo, já que a única menção (da babá), não se confirmou nas entrevistas do menino – afirmou, por escrito, a promotora Dinamárcia.

O encontro entre Bernardo e o pai, diante do juiz e da promotora, ocorreu em 11 de fevereiro. Clandestinamente, Boldrini gravou em seu celular parte da audiência. O material foi recuperado por peritos e veio a público recentemente. Mas o que foi prometido por Boldrini ao filho, e o que o menino falou, não chegou a ser gravado nem registrado formalmente.

Conforme o juiz, não é comum “registrar por escrito diálogos informais mantidos em ambiente de conciliação”. Ele também não autorizou gravação da sessão. O que se sabe é que Boldrini pediu uma chance de retomar a relação com o filho. Bernardo aceitou mediante singelas condições: queria ter a chave de casa, poder brincar com a irmã e ter um animal de estimação.

Feita a “conciliação”, pai e filho deveriam retornar ao fórum 90 dias depois, em 13 de maio, para reavaliação. Nos últimos dias de vida, Bernardo havia acertado com Boldrini que teria um aquário. O menino amava animais, sobretudo cachorros. Quando a mãe, Odilaine Uglione, era viva, tinha vários cães em casa. Depois da morte dela, Boldrini se livrou de todos, além de queimar pertences e fotos de Odilaine, uma das queixas de Bernardo aos conselheiros tutelares.

Até 11 de fevereiro, quando Bernardo deixou o fórum com o pai acreditando que sua vida mudaria, nenhum agente da rede de proteção ou autoridade havia perguntado ao menino sobre a tentativa de asfixia que teria sofrido. Hoje, todos dizem que ele jamais falou sobre qualquer tipo de agressão ou ameaça física. O único relato que Bernardo fez sobre isso, porém, foi desconsiderado por todas as instâncias da rede. A madrasta, que seria a principal peça de conflito no lar e de quem ele reclamava sofrer ofensas, nunca foi procurada.

Foi da madrasta que pelo menos três pessoas ouviram afirmações sobre a intenção de matar ou, de forma mais genérica, livrar-se de Bernardo. Uma secretária de Boldrini, Andressa Wagner, e uma técnica de enfermagem, Marlise Cecília Renz, que trabalhavam com o casal, sabiam que Graciele não gostava do menino. No dia em que Boldrini foi chamado ao fórum, Graciele disse, na frente da secretária, que daria um fim naquela situação e que tinha gente para fazer isso.

Uma das funcionárias pensava até em sair do emprego, mas nenhuma avaliou a possibilidade de contar o que sabia à polícia ou a algum órgão de proteção. Sandra Cavalheiro, amiga de Graciele e testemunha no processo, foi procurada meses antes do crime pela madrasta, que dizia que ela e o marido pretendiam se livrar de Bernardo. Também não contou a ninguém.

Por três anos, por vontade e esforço próprios, Bernardo frequentou a catequese na Paróquia Santa Inês. Levou documentos, tratou de sua inscrição, foi coroinha.

– Ele era malcuidado, quase sempre chegava atrasado, tinha falta de higiene, a gente via que não tinha um adulto dando atenção a ele. De minha parte nunca falei nada para ninguém, mesmo porque não sabia o que se passava dentro de casa. Eu achava que era ele, que estava na idade, né, 11 anos, de levantar tarde. Nunca pensei que tivesse passando alguma coisa dentro de casa – conta Ivonete de Mattos, catequista de Bernardo em 2013. – Para mim, ele nunca reclamou de nada. Depois eu me senti meio culpada, porque a religião é fundamentada na família, a gente fala muito em família, a gente incentiva as crianças a respeitar pai e mãe. De repente, quantas vezes que a gente falava que pai e mãe é o principal dentro de casa e ele ficava triste ouvindo isso...

A catequista não conheceu o pai e a madrasta de Bernardo. Boldrini e Graciele não iam às missas, às reuniões de pais nem estiveram presentes na Primeira Comunhão.

– Quando aparecia para contribuir com o dízimo, o pai falava do excesso de trabalho. A gente procura entender a situação das famílias. O caso agora está na Justiça. Não há mais o que comentar – resume a coordenadora da catequese, que se identificou apenas como Daniele.

Em um dos relatórios da rede de proteção sobre Bernardo, consta: “A comunidade de Três Passos, em geral, sabe que Bernardo é negligenciado pelo pai e pela madrasta”.

– Ele sempre era acolhido, alguém sempre levava ele para casa. Então, talvez, por isso, perante os olhos da sociedade, (a situação) não parecia tão grave – reflete a conselheira tutelar Isoldi.

– A gente sabia que no finais de semana ela estava na casa das pessoas, mas pessoas da alta sociedade, não era de qualquer um, não estava em casas correndo riscos. Nossa obrigação é investigar todos os casos que chegam, mas não somos investigadores. Quem tem que averiguar é a polícia. Temos um limite – atesta Nestor, colega de Isoldi.

– Nós encaminhamos certo, fizemos nosso trabalho certo. Pena que aconteceu de ninguém, de não ter passado na cabeça de ninguém, nem na do juiz, nem na nossa, de que chegaria nesse ponto – lamenta a conselheira Deborah.

No começo de abril, enquanto o plano para sua morte era finalizado com a compra de remédios analgésicos para dopá-lo, de uma pá e de cavadeira para abrir a cova e de soda cáustica para corroer seu corpo, Bernardo cuidava dos detalhes para a concretização de um sonho: ter um aquário.

Nos dias 2 e 3 de abril, Bernardo percorreu floriculturas e ferragens, além de consultar livros, a fim de reunir o material para decorar o aquário de segunda mão que ganhara de uma amiga da falecida mãe. Foi também nestes dias, segundo a investigação da polícia, que a madrasta de Bernardo e uma amiga, Edelvânia Wirganovicz, compraram remédios, equipamentos e abriram o buraco para enterrá-lo, em Frederico Westphalen.

Na tarde de 3 de abril, Bernardo vendeu rifas da escola. À noite, telefonou três vezes para a comerciante que havia lhe dado o aquário. Ansioso, queria confirmar se podia mesmo buscar o presente no dia seguinte. Na sexta, 4 de abril, estava radiante. Almoçou em casa com o pai e a madrasta, repetiu a comida, pôde brincar com a irmã. Logo depois, ainda usando o uniforme do Colégio Ipiranga, embarcou no carro de Graciele, supostamente para buscar o aquário. Mas a esperança e a ousadia do menino de 11 anos arrefeceram diante de doses excessivas de Midazolan.

Já com a medicação agindo no corpo, fez a última ligação registrada em seu celular para quem considerava como mãe: a comerciante Juçara Petry. Não se sabe se tentava pedir socorro ou só queria conversar. A ligação não chegou a completar. O aparelho nunca foi achado pela polícia. Juçara não estava em Três Passos. Retornou na noite daquela sexta-feira, quando Bernardo já estava morto.

A notícia do sumiço se espalhou pela cidade na noite de domingo, dia 6, quando o pai fez o registro policial. Na segunda-feira, o alarme soou nos órgãos de proteção. O Conselho Tutelar buscou informações na escola e fez ofício à promotora. Diante da notícia, Dinamárcia fez novo pedido ao juiz de suspensão de guarda do pai. Desta vez, o juiz, em sua decisão, escreveu longas considerações: “Aparentemente, Bernardo, após o falecimento de sua mãe e da constituição de nova família pelo pai, passou a ser um estorvo à nova instituição familiar. Logo, se ele estava longe, as conveniências estavam atendidas: infelizmente, essa é a realidade. Frente a essa situação, se – e a condicional é o que nos resta, neste momento – Bernardo for encontrado com vida e em boas condições de integridade pessoal, seu retorno à degradada realidade que enfrenta em seu lar parental é a medida menos acertada no momento. A suspensão da guarda, pretendida pela agente ministerial, é a medida deveras acertada”.

As buscas duraram até 14 de abril, quando Edelvânia confessou o crime e indicou o local onde estava o corpo. Além dela, o pai e a madrasta tiveram a prisão decretada nesse dia, pelo juiz Fernando.

– Esse caso nos traz a necessidade de repensar questões do cotidiano, de que o sistema de garantias como um todo não tem esse olhar com o mesmo cuidado que teria se fosse um filho da classe pobre. Nesse particular, a classe pobre está, entre aspas, melhor assistida. Famílias com melhor poder aquisitivo naturalmente não aceitam essa intervenção. E isso, muitas vezes, inibe o Conselho Tutelar, o Ministério Público, a escola – comenta Vera Deboni, juíza da 3ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre.

– Estamos preparados para identificar e agir nos casos de violência física, facilmente detectados, mas não para perceber a presença da negligência severa e da violência psicológica. Um importante instrumento para identificar a gravidade da situação é a avaliação e o acompanhamento psicológico – aponta a procuradora Maria Regina Fay de Azambuja, coordenadora do Centro de Apoio da Infância e Juventude do MP.

Quase seis meses depois do crime, a história do menino que não queria ser personagem algum ainda inquieta a cidade. Na casa dos Petry ficou muito de Bernardo: trabalhos escolares, fotos, bilhetes. Era lá que ele fazia temas, estudava, cortava unhas, brincava de fazer a barba com o “tio Carlinhos”, passava finais de semana, comemorava seus aniversários, fazia pão – adorava comer a massa crua – e experimentava com a “tia Ju” outras receitas, como de cupcake. Muito díficil encontrar foto de festa da família Petry em que Bernardo não apareça. E é comum o prato de “Bê” surgir na mesa do almoço. Juçara se atrapalha, ainda o espera chegar.

– Gostaria que no meio desse turbilhão que se abateu sobre nós com a morte do Bê, a gente consiga passar para as autoridades que podem fazer alguma coisa, que podem tirar uma criança de casa, que deem um pouco mais de atenção para esses inocentes. Sinto muita falta dele, tem dias que é bem complicado – conta Juçara, a mãe que Bernardo queria. – Tu vai almoçar, parece que ele está chegando, vai trabalhar, parece que ele está vindo. Ele estava sempre junto. Agora está pior, é muita saudade. No início, era aquela luta para achá-lo, depois esse turbilhão de informação. A gente não tinha ideia do que ele passava. Como ele não falou nada, acho que temia por nós. A gente se pergunta: será que ele não deu uma pista e não vimos? Aí, depois, vem aquela dor: meu Deus, por que eu não arranquei ele de lá? Talvez ele estivesse salvo, hoje estaria aqui. Conosco.

Tribunal aplica princípio da insignificância em caso de descaminho de DVDs

A Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região confirmou, por unanimidade, decisão que absolveu, com base no princípio da insignificância, réus que trouxeram do Paraguai 1080 tubos de DVDs virgens, tendo sido denunciados por descaminho (artigo 334 do Código Penal). 

Eles foram flagrados na cidade de Assis, no interior de São Paulo, com a mercadoria desacompanhada de documentação fiscal. Um dos denunciados alegou ser o dono dos DVDs e afirmou que os adquiriu na Cidade de Leste, no Paraguai, e que pretendia comercializá-los em Campinas, no interior de São Paulo. De acordo com o Auto de Relação de Mercadorias, o valor total dos tributos correspondem a R$ 14.085,07. 

O desembargador federal Antonio Cedenho, ao confirmar a decisão de primeiro grau, declarou que, para fins de aplicação do princípio da insignificância no crime de descaminho, deve ser considerado o limite de R$ 20 mil, de acordo com a Portaria nº 75/ 20 12 do Ministério da Fazenda, que atualizou o valor disposto no artigo 20, da Lei nº 10.522/02. 

Ele ressaltou também que o Supremo Tribunal Federal (STF), confirmou esse patamar de R$ 20 mil para aplicação desse princípio. 

Na ocasião, o STF ponderou que o princípio da insignificância deve incidir quando presentes, cumulativamente, as seguintes condições objetivas: mínima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ação; grau reduzido de reprovabilidade do comportamento; e inexpressividade da lesão jurídica provocada (HC 118.067). 

O relator do acórdão concluiu que, “como o montante de impostos devidos não supera o limite de R$ 20 mil reais, é de se aplicar o princípio da insignificância, excluindo a tipicidade do fato”. Nº do Processo: 0001574-72.2010.4.03.6116

 Fonte: Tribunal Regional Federal da 3ª Região

Projeto amplia lista de crimes contra a mulher

A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) poderá definir novos comportamentos considerados violência contra a mulher. Conforme explica a autora, deputada Erika Kokay (PT-DF), o Projeto de Lei 7163/14 inclui na lei situações do dia-a-dia que vão além da unidade doméstica, da família e das relações íntimas de afeto, que são as únicas previstas atualmente. 

Pelo texto, a lei passa a abrigar situações de abuso de autoridade ou de poder para causar dano à mulher. Essa mudança, segundo a autora, “visa punir os maus profissionais que se aproveitam de sua situação privilegiada para causar danos e lesões às mulheres”. 

Confiança Ainda de acordo com a proposta, será incluída na legislação prática em que o agressor causar morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial à mulher com abuso de confiança ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. De acordo com Erika Kokay, a alteração vai permitir, por exemplo, a aplicação da Lei Maria da Penha a “situações em que o agressor, baseado no gênero, violenta a mulher utilizando-se de sua qualidade de vizinho, visitante ou simples colega em quem a vítima deposita toda sua confiança”.

 Tramitação 

Com tramitação em caráter conclusivo, o projeto será analisado pelas comissões de Seguridade Social e Família; e de Constituição e Justiça e de Cidadania (inclusive quanto ao mérito).

 Fonte: Câmara dos Deputados Federais

Tribunal do Júri precisa passar por uma reengenharia processual

Por Aury Lopes Jr(*)

Um dos graves problemas para a evolução de um determinado campo do saber é o repouso dogmático. Quando não se estuda mais e não se questionam as “verdades absolutas”. O Tribunal do Júri é um dos temas em que a doutrina nacional desfruta de um longo repouso dogmático, pois há anos ninguém (ousa) questiona(r) mais sua necessidade e legitimidade.

É verdade que o Tribunal do Júri, cláusula pétrea da Constituição, art. 5º, XXXVIII, foi muito importante na transição para o sistema acusatório e sua consolidação, mas isso não desautoriza a crítica, até porque a Constituição consagra o júri, mas com a “organização que lhe der a lei”. Ao remeter a disciplina de sua estrutura à lei ordinária, permite uma ampla e substancial reforma (para além da realizada em 2008, destaque-se), desde que assegurados o sigilo das votações, a plenitude de defesa, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Mas, para isso, é necessária uma visão desapaixonada, que permita cortar na carne e reinventar o júri.

Um dos primeiros argumentos invocados pelos defensores do júri é o de que se trata uma instituição “democrática”. Não iniciarei uma longuíssima discussão do que seja “democracia”, mas com certeza o fato de sete jurados, aleatoriamente escolhidos, participarem de um julgamento é uma leitura bastante reducionista do que seja democracia. A tal “participação popular” é apenas um elemento dentro da complexa concepção de democracia, que, por si só, não funda absolutamente nada em termos de conceito. Democracia é algo muito mais complexo para ser reduzido na sua dimensão meramente formal­representativa. Noutra dimensão, aponta-se para a legitimidade dos jurados na medida em que são “eleitos”, como se isso fosse suficiente. Ora, o que legitima a atuação dos juízes não é o fato de serem “eleitos” entre seus pares (democracia formal), mas sim a posição de garantidores da eficácia do sistema de garantias da Constituição (democracia substancial). Ademais, de nada serve um juiz eleito se não lhe damos as garantias orgânicas da magistratura e exigimos que assuma sua função de garantidor.

Os jurados tampouco possuem a “representatividade democrática” necessária (ainda que se analisasse numa dimensão formal de democracia), na medida em que são membros de segmentos bem definidos: funcionários públicos, aposentados, donas de casa, estudantes, enfim, não há uma representatividade social com suficiência democrática. Argumenta-se, ainda, em torno da independência dos jurados. Grave equívoco. Os jurados estão muito mais suscetíveis a pressões e influências políticas, econômicas e, principalmente, midiática, na medida em que carecem das garantias orgânicas da magistratura. A falta de profissionalismo, de estrutura psicológica, aliados ao mais completo desconhecimento do processo e de processo, são graves inconvenientes do Tribunal do Júri. Não se trata de idolatrar o juiz togado, muito longe disso, senão de compreender a questão a partir de um mínimo de seriedade científica, imprescindível para o desempenho do ato de julgar. Os jurados carecem de conhecimento legal e dogmático mínimo para a realização dos diversos juízos axiológicos que envolvem a análise da norma penal e processual aplicável ao caso, bem como uma razoável valoração da prova.

Mas essa é uma crítica de base, que vai ao núcleo da legitimidade do júri. Penso que será mais útil – já que é uma cláusula pétrea – pensarmos a “mudança possível”.

O primeiro problema refere­se ao aspecto probatório, espinha dorsal do processo penal, na medida em que é através da prova que obtém a captura psíquica do julgador e constrói-se o convencimento. Na sistemática brasileira, a prova é colhida na primeira fase, diante do juiz presidente, mas sem a presença dos jurados. Em plenário, até pode ser produzida alguma prova, mas a prática demonstra que essa é uma raríssima exceção. A regra geral é a realização de mera leitura de peças, com acusação e defesa explorando a prova já produzida e subtraindo dos jurados a possibilidade do contato direto com testemunhas e outros meios de provas, e, como muito, haverá interrogatório no final (sem esquecer do direito de não comparecer ou de comparecer e manter o direito de silêncio). O julgamento resumese então a folhas mortas. Os jurados desconhecem o Direito, o processo e, principalmente, a prova, na medida em que sua parca cognição se limita (e muito) ao trazido pelo debate, ainda que, em tese, tenham acesso a “todo” o processo (como se esse processo fosse realmente de conhecimento dos jurados).

Como mudar? Sumarizando (leia-se, limitação da cognição) a primeira fase, realmente enxugando essa instrução, inclusive com a limitação do número de testemunhas, apenas para justificar a decisão de pronuncia, absolvição sumaria ou desclassificação (a impronúncia, obviamente, tem que ser abolida, por substancialmente inconstitucional). A ‘prova’ tem que ser produzida em plenário, na frente dos jurados. Aqui temos que mudar a lei mas, principalmente, a cultura. Elementar que isso terá um ‘custo’, com júris durando dias, talvez até semanas. Mas é o preço a ser pago se efetivamente se quer um júri de verdade (e não essa fraude que temos). E, falando em pagamento, muitos países já adotam uma forma de remunerar o jurado, para compensar do tempo gasto no julgamento. Por que não?

Interessante, ainda, como um dos principais pilares em comum do Direito Penal e do Processo Penal cai por terra sem quem ninguém o proteja. O in dubio pro reo é premissa hermenêutica inafastável do Direito Penal e, no campo processual, juntamente com a presunção de inocência, como regra de julgamento e tratamento.

Quando os jurados decidem pela condenação do réu por 4x3, está evidenciada a dúvida razoável, em sentido processual. Significa dizer que existe apenas 57,14% de consenso, de convencimento. Questiona­se: alguém admite ir para a cadeia com 57,14% de convencimento? Elementar que não.

A sentença condenatória exige prova robusta, alto grau de probabilidade (de convencimento), algo incompatível com um julgamento por 4x3. Ou seja, ninguém poderia ser condenado por 4x3, mas isso ocorre diuturnamente no Tribunal do Júri, pois lá, como diz o jargão forense, o in dubio pro reo passa a ser lido pelos jurados como in dubio “pau” no reo...

Precisamos, com urgência, aumentar o número de julgadores, para 9 jurados, com a exigência de votação mínima, para condenar, de 6 votos (logo, para absolver, vale 5x4); ou ainda, para 11 jurados, com no mínimo 7 jurados votando “sim” para haver condenação, de modo que, para absolver, pode ser 6 a 5. No mínimo, como sugerido e inicialmente acolhido no PLS 156 (Projeto do Código de Processo Penal), passar para 08 jurados.

O número par de integrantes – 08 jurados - impede soluções duvidosas como as que ocorrem atualmente, pois, em caso de empate, teríamos a configuração da dúvida favorecedora da absolvição. Com essa simples modificação alguém somente seria condenado com, no mínimo, dois votos de diferença (5x3).

Mas não é apenas no plenário que o in dubio pro reo é abandonado. Ao final da primeira fase, o juiz presidente poderá tomar uma dessas quatro decisões: absolver sumariamente, desclassificar, impronunciar ou pronunciar. O problema não está na decisão em si, mas no princípio que irá orientar a valoração da prova nesse momento. A imensa maioria dos autores e tribunais segue repetindo que, nessa fase, à luz da “soberania do júri” (novamente o argumento de autoridade, mas completamente vazio de sentido), o juiz deve guiar­se pelo in dubio pro societate. A pergunta é: qual a base constitucional desse “princípio”? Nenhuma, pois ele não foi recepcionado pela Constituição de 1988 e não pode coexistir com a única presunção constitucionalmente consagrada: a presunção de inocência e o in dubio pro reo.

Também foi um erro, quando da reforma pontual, manter­se a decisão de impronúncia, que gera um estado de pendência, em que o réu não está condenado nem absolvido. É substancialmente inconstitucional, por violar a presunção de inocência e, dependendo do caso, o direito de ser julgado em um prazo razoável.

Devemos enfrentar, ainda, a questão da falibilidade, que também está presente nos julgamentos levados a cabo por juízes togados, o que é elementar. Contudo, não é necessário maior esforço para verificar que a margem de erro (injustiça) é infinitamente maior no julgamento realizado por pessoas que ignoram o direito em debate e a própria prova da situação fática em torno da qual gira o julgamento, e, como se não bastasse, são detentoras do poder de decidir de capa a capa e mesmo “fora da capa” do processo, sem qualquer fundamentação. Os juízes e tribunais também erram, e muito, mas para isso existe todo um sistema de garantias e instrumentos limitadores do poder, que reduzem os espaços impróprios da discricionariedade judicial (mas não eliminam, é claro). A fertilidade do terreno da injustiça é completamente diversa.

É como querer comparar a margem de erro de um obstetra e sua equipe, numa avançada estrutura hospitalar de uma grande capital, com a de uma parteira, isolada em plena selva amazônica. É óbvio que o risco está sempre presente, mas com certeza a probabilidade de sua efetivação é bastante diversa. E se a parteira, em plena selva amazônica, é útil e necessária, diante das inafastáveis circunstâncias, o mesmo não se pode dizer do Tribunal do Júri na forma como está estruturado e concebido hoje.

Outra garantia fundamental que cai por terra no Tribunal do Júri é o direito de ser julgado a partir da prova judicializada. Em diversas oportunidades[1] expliquei a distinção entre atos de investigação (realizados no inquérito policial) e atos de prova (produzidos em juízo, na fase processual), ressaltando a importância de que a valoração que encerra o julgamento recaia sobre os atos verdadeiramente de prova, devidamente judicializados e colhidos ao abrigo do contraditório e da ampla defesa. Para tanto, defendo a adoção do sistema de exclusão física do inquérito policial, buscando evitar a contaminação do julgador pelos atos (de investigação) praticados na fase inquisitória do inquérito policial (portanto, em segredo, sem defesa ou contraditório e não judicializado). Isso é fundamental noTribunal do Júri, pois qualquer esperança de ser julgado a partir da prova judicializada cai por terra, na medida em que não existe a exclusão física dos autos do inquérito e tampouco há vedação de que se utilize em plenário os elementos da fase inquisitorial (inclusive o julgamento pode travarse exclusivamente em torno dos atos do inquérito policial). Para completar o triste cenário, os jurados julgam por livre convencimento imotivado, sem qualquer distinção entre atos de investigação e atos de prova.

O golpe fatal no júri está na absoluta falta de motivação do ato decisório. A motivação serve para o controle da racionalidade da decisão judicial. O mais importante é explicar o porquê da decisão, o que o levou a tal conclusão sobre a autoria e materialidade. A motivação sobre a matéria fática demonstra o saber que legitima o poder, pois a pena somente pode ser imposta a quem – racionalmente – pode ser considerado autor do fato criminoso imputado. Essa qualidade na aquisição do saber é condição essencial para legitimidade do atuar jurisdicional.

A decisão dos jurados é absolutamente ilegítima porque carecedora de motivação. Não há a menor justificação (fundamentação) para seus atos. Trata­se de puro arbítrio, no mais absoluto predomínio do poder sobre a razão, absolutamente incompatível com o nível de evolução civilizatória do processo penal, pois poder sem razão é prepotência.

A situação é ainda mais grave se considerarmos que a liberdade de convencimento (imotivado) é tão ampla que permite o julgamento a partir de elementos que não estão no processo. A “íntima convicção”, despida de qualquer fundamentação, permite a imensa monstruosidade jurídica de ser julgado a partir de qualquer elemento. Isso significa um retrocesso ao Direito Penal do autor, ao julgamento pela “cara”, cor, opção sexual, religião, posição socioeconômica, aparência física, postura do réu durante o julgamento ou mesmo antes do julgamento, enfim, é imensurável o campo sobre o qual pode recair o juízo de (des)valor que o jurado faz em relação ao réu. E, tudo isso, sem qualquer fundamentação. Enfim, é o decisionismo (anti-democrático) levado ao extremo, a uma dimensão absolutamente inadmissível.

Mais um problema da íntima e incontrolável convicção: como fica o duplo grau de jurisdição? Se não sei porque foi decidido dessa ou daquela forma, como recorrer? Vamos seguir ‘tentando’ adivinhar a “decisão manifestamente contrária à prova dos autos”?

Como contornar esse gravíssimo problema da falta de motivação?

A Espanha já enfrentou tal questionamento e decidiu — na Ley del Jurado — excluir fisicamente os autos da “instrución preliminar” e criar um mecanismo de fundamentação: um formulário simples, com perguntas diretas e estruturadas de modo a que – por meio das repostas – tenhamos um mínimo de demonstração dos elementos de convicção. Algo bastante simples para que o jurado, com suas palavras e de forma manuscrita, diga porque está decidindo desta ou daquela forma. Esse formulário simplificado é respondido pelos jurados ao final dos debates, em um tempo razoável fixado em lei e supervisionado pelo juiz, mantendo-se a incomunicabilidade do modelo brasileiro. Poderia ser um monitor e teclado para cada jurado (simples terminais), ligados a um computador administrado pelo juiz. Asseguramos ainda mais o sigilo das votações e otimizamos o julgamento. Simples, prático e perfeitamente exequível. E será um imenso avanço em termos de garantia da jurisdição e eficácia do direito ao duplo grau de jurisdição.

Teria muito mais a dizer, sobre a competência, quesitos, plenário, etc., mas o espaço não permite. Penso que o júri é uma opção constitucional e democraticamente feita e que precisa, por isso, ser respeitado, sem que se abra mão do debate constante, do repensar contínuo de suas rotinas de acertos e erros, da necessidade de sua reengenharia permanente. O júri precisa ser presentificado e reestruturado, para dar conta do nível de exigência do processo penal e da sociedade do século XXI.

[1] Entre outras, consulte­se nossa “Direito Processual Penal”, 11ª edição, Saraiva, São Paulo, 2014 e também “Investigação Preliminar no Processo Penal”, publicado pela mesma editora.

(*)Aury Lopes Jr é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

Fonte: Site Conjur

Propostas em análise na Câmara tornam mais rígida a legislação sobre aborto


Pesquisa divulgada pelo Ibope no dia 3 de setembro aponta que 79% da população brasileira é contra a legalização do aborto. Já a Pesquisa Nacional de Aborto, coordenada pelos professores da Universidade de Brasília (UnB) Debora Diniz e Marcelo Medeiros, mostra que uma em cada cinco mulheres brasileiras fez pelo menos um aborto até os 40 anos. A pesquisa, de 2010, também mostra que aproximadamente metade das mulheres que se submeteram a um aborto clandestino tiveram de ficar internadas em decorrência de complicações. 

O assunto também é controverso na Câmara dos Deputados. Projeto com o intuito de legalizar o aborto, apresentado pelo atual candidato do PV à Presidência da República, Eduardo Jorge, tramitou na Casa por dez anos, de 1991 a 2011. 

Mas foi rejeitado por duas comissões temáticas e arquivado. Hoje, na Câmara, não tramitam propostas com o objetivo de legalizar a prática do aborto. Ao contrário, estão sendo analisadas na Casa diversas propostas com o intuito de tornar mais rígida a legislação brasileira, que já considera o aborto como crime contra a vida humana. 

A mulher que aborta pode ser punida com detenção de 1 a 4 anos. A prática só é permitida quando há risco de vida para a mulher causado pela gravidez, quando a gravidez é resultante de um estupro ou se o feto for anencefálico. Congresso conservador Para a socióloga Jaluzia Batista, assessora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), o Congresso Nacional está ficando mais conservador e isso se reflete na análise de propostas relativas ao aborto.

“Por conta do reforço na bancada religiosa, que já tinha os católicos e agora foi reforçada pelos evangélicos, e quando os PLs são de grande interesse, eles também se juntam com a bancada ruralista. A gente precisa fazer um debate muito amplo na sociedade brasileira sobre a perspectiva do estado laico, de que religião e política precisam se separar.” 

A socióloga destaca que vários deputados das bancadas religiosas apresentam projetos que podem fazer retroceder os direitos conquistados pelas mulheres. O Congresso Nacional aprovou, no ano passado, proposta para regulamentar o atendimento às vítimas de estupro no Sistema Único de Saúde (SUS), que se transformou na Lei 12.845/13. Depois disso, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) apresentou projeto (PL 6033/13) justamente para revogar a lei. Para ele, essa lei estimula a prática do aborto no País. 

Autor do maior número de propostas para tornar mais rígida a legislação contrária ao aborto, Cunha também foi relator do chamado Estatuto do Nascituro (PL 478/07), que estabelece proteção jurídica à criança que ainda vai nascer. A proposta vem sendo criticada pelas entidades de defesa dos direitos da mulher, por prever a concessão de uma bolsa a mulheres que engravidem após estupro, como forma de desestimular o aborto. 

Cunha defende a medida.Ele tem um efeito muito importante na sociedade, que é o efeito de você identificar que a vida começa na concepção. Do ponto de vista que gerou essa polêmica de adequação com relação à violência sexual é você dar oportunidade a quem sofreu violência sexual de optar por não praticar o aborto.Eduardo Cunha também apresentou um projeto para aumentar a punição do médico que interromper a gravidez de uma paciente, fora das hipóteses legais (PL 1545/11), e outra proposta para punir quem induzir, instigar e auxiliar a mulher grávida a praticar aborto (PL 5069/13). 

Fonte: Câmara dos Deputados Federais

Princípio da insignificância se aplica aos casos de crime ambiental

Por unanimidade, a 3.ª Turma do TRF da 1.ª Região confirmou sentença da Vara Única da Subseção Judiciária de Passos (MG) que absolveu duas pessoas da prática de crime contra o meio ambiente. 

A decisão foi tomada após a análise de recurso apresentado pelo Ministério Público Federal (MPF) contra a sentença que aplicou à hipótese o princípio da insignificância. Consta dos autos que o MPF denunciou os réus, flagrados em 12/4/2008 pescando em local interditado, de posse de um pescado da espécie Dourado de, aproximadamente, sete quilos. 

Ao analisar a questão, o Juízo de primeiro grau entendeu que deve ser aplicado ao caso o princípio da insignificância, uma vez que os réus não utilizaram petrechos proibidos para pesca, ou praticado pesca de espécie ameaçada de extinção. 

“As sanções cíveis e administrativas previstas para o caso, como a apreensão dos equipamentos e multa, são suficientes para os fins de reprovabilidade das condutas praticadas pelos réus”, ponderou. 

O MPF, então, recorreu ao TRF1 alegando, em síntese, que a conduta dos réus se configura como crime formal, visto que ultrapassaram a descrição do tipo penal quando efetivamente capturaram cerca de 20 quilos de Dourado. 

Assevera que não há que se falar em irrelevância penal das condutas lesivas ao meio ambiente, “tendo em vista tratar-se de bem juridicamente indisponível”. Por fim, sustenta o ente público ser patente a reprovabilidade das condutas praticadas pelos réus, uma vez que um deles é reincidente e o outro já esteve envolvido em fato semelhante. 

Dessa forma, requer a condenação dos réus pela prática de crime ambiental. Os membros da 3.ª Turma não acataram os argumentos apresentados pelo MPF. “Os fatos, por si só, não impedem a aplicação do princípio da insignificância, pois a jurisprudência tem reconhecido, em casos excepcionais e de maneira cautelosa, a atipicidade material de crimes contra o meio ambiente quando a conduta do agente não alcança grande reprovabilidade e é irrelevante a periculosidade social e a ofensibilidade da ação”, diz a decisão. 

Ainda de acordo com o Colegiado, conforme bem ponderou o juízo de primeiro grau, “foi encontrado em poder dos réus um caniço de bambu com molinete e peixe da espécie Dourado, não tendo os réus se utilizado de petrechos proibidos para a pesca, demonstrando pouca ofensividade e nenhuma periculosidade social da ação”. 

Por essas razões, “entendo que a sanção administrativa aplicada aos acusados - multa e apreensão do equipamento - se apresenta como meio adequado e suficiente para os fins de reprovação e prevenção do delito praticado por eles, o que torna desnecessária a intervenção do direito penal nesta hipótese”, ponderou o relator, desembargador federal Ney Bello. 3.ª Turma - O Colegiado é composto pelos desembargadores federais Mônica Sifuentes (presidente), Mário César Ribeiro e Ney Bello. Nº do Processo: 0002290-93.2010.4.01.3808 

Fonte: Tribunal Regional Federal da 1ª Região

Denúncias contra Policiais Militares de Jaguarão

Jornal Diário Popular publicou, ontem, notícia sobre mais uma prisão de Policial Militar (Brigada Militar) em Jaguarão.

A Promotora de Justiça pediu a prisão do sexto policial por suposta Tortura


O mandato contra a sargento I.L.V. foi cumprido no início da noite de quinta-feira pela Brigada Militar

Por: Álvaro Guimarães -  alvaro.policia@diariopopular.com.br

A Promotoria de Justiça de Jaguarão determinou a prisão de mais um policial militar da cidade por envolvimento no caso de tortura que teria sido realizado contra cinco suspeitos de furtar a casa de um dos PMs e a motocicleta de outro. O mandato de prisão contra a sargento I.L.V. foi cumprido no início da noite de quinta-feira pela Brigada Militar (BM). Na sexta-feira (26) a sargento foi transferida para Porto Alegre onde estão os outros cinco acusados.

Na quarta-feira a promotora Cláudia Pegoraro havia apresentado a denúncia contra os policiais R.F.N., E.F.P., E.R.S., J.S.V., O.S.F e contra a sargento. Um civil, F.M.C. também foi denunciado como participante da sessão de tortura realizada na madrugada de 7 de setembro. Ele é o único que ainda permanece em liberdade.

O comando do 3º Batalhão de Polícia de Área de Fronteira (BPAF) informou, sexta-feira, que o policiamento na cidade foi reforçado por policiais transferidos temporariamente dos quartéis de Rio Grande e Pelotas. O número exato de PMs enviados para Jaguarão, no entanto, não foi detalhado.

A denúncia

A denúncia do Ministério Público (MP) assinada pelos promotores Cláudia Rodrigues Pegoraro, de Jaguarão, e Luciano Vaccaro, da Subprocuradoria-Geral de Justiça para Assuntos Institucionais aponta cinco policiais militares e um civil como os autores da sessão de tortura e, ainda, de coação de testemunhas. Um dos policiais também foi denunciado por posse ilegal de um revólver calibre 38.
Os policiais O.F. e I.V são acusados, ainda de abuso de autoridade, por forjar uma prisão em flagrante e invadir uma residência para apreender objetos furtados sem mandado judicial.

Relembre o caso

Na noite de 6 de setembro, os policiais O.F. e J.V. tiveram suas residências furtadas. Os dois estavam de folga. Eles pediram ajuda para outros três policiais que estavam de serviço naquela noite R.N., E.P. e E.S. e para a sargento I.V. que também estava de folga. Durante a madrugada, os seis realizaram uma verdadeira caçada pela periferia e zona rural de cidade em busca de suspeitos dos crfime. A cada invasão de residência, o grupo algemou suspeitos dos furtos e agrediu as vítimas com chutes e socos para depois colocá-los dentro da viatura. Em seguida se encaminharam para a chácara de propriedade de J.V., na localidade da Santinha, interior da cidade e lá espancaram os suspeitos com pedaços de pau e rebenque. As vítimas relataram que também foram sufocadas com sacos plásticos. A tortura durou até o raiar do dia. Uma das vítimas é um adolescente de 17 anos.


Fonte: Diário Popular

terça-feira, setembro 23

2ª Turma suspende análise de HC sobre a utilização de maus antecedentes na dosimetria da pena

Pedido de vista da ministra Cármen Lúcia suspendeu, na sessão da na última terça-feira (16), o julgamento de Habeas Corpus (HC 122940), impetrado pela Defensoria Pública da União (DPU) em favor de E.F.S., condenado à pena de três anos de reclusão, em regime inicial semiaberto, pela prática do crime de furto qualificado (artigo 155, parágrafo 4º, do Código Penal). 

Na retomada da análise do HC, os ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) discutirão, entre outros pontos, a possibilidade de considerar como maus antecedentes, para fins de dosimetria da pena, a existência de procedimentos criminais em andamento contra o sentenciado. Até o momento, somente votou o relator, ministro Gilmar Mendes, no sentido de conceder o HC. 

Com base na cláusula constitucional da não culpabilidade ou da presunção de inocência, ele considera inviável o reconhecimento de maus antecedentes referentes a inquéritos e ações penais em fase que ainda seja permitida a apresentação de novos recursos. 

No caso em questão, em abril de 2009, E.F.S. arrombou um comércio de material de construção em Teresina (PI), de onde subtraiu televisão, lâmpadas, entre outros objetos, além de ter danificado o sistema de alarme, a porta e uma grade. Com a condenação em primeira instância, a defesa interpôs apelação ao Tribunal de Justiça do Estado do Piauí (TJ-PI), contudo o recurso foi desprovido. 

Também não conseguiu êxito em recurso especial interposto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). 

Defesa A DPU alega que o condenado sofre constrangimento ilegal em razão da desproporcionalidade da pena-base aplicada e por ter sido negado o pedido para a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Sustenta que a majoração da pena-base acima do mínimo legal em um ano e seis meses foi baseada unicamente em dois elementos do artigo 59 do Código Penal, “valorados de forma inidônea, configura flagrante ilegalidade ferindo os princípios da razoabilidade e proporcionalidade”. 

A Defensoria argumenta que a pena deve ser calculada no mínimo legal para atender o que estabelece o artigo 59 do CP. 

Assim, solicita a concessão da ordem para reduzir a pena-base ao mínimo legal e substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direito. 

Voto do relator 

De início, o relator verificou que o juízo de primeiro grau fixou a pena-base acima do legal por reconhecer circunstâncias judiciais desfavoráveis. Conforme o ministro Gilmar Mendes, foram invocados na primeira instância da justiça: a “patente culpabilidade” - tendo em vista consciência da ilicitude -, bem como o “rompimento de obstáculo” - para fixar a pena-base em três anos e seis meses de reclusão, sendo que a pena mínima era de dois anos. Já a corte estadual manteve a pena, acrescentando outra circunstância desfavorável: a de que o réu teria “maus antecedentes”. 

“Não há como acolher como idônea a circunstância da patente culpabilidade inclusive porque a própria culpa já integra o tipo”, ressaltou o ministro Gilmar Mendes. 

Ele também entendeu que, no caso, incidia apenas a qualificadora do rompimento de obstáculo, ou seja, “essa circunstância já é considerada na qualificadora não podendo ser novamente tomada para elevar a pena-base sem uma especial demonstração de sua gravidade no caso concreto”. Assim, o ministro afirmou que a decisão condenatória usou o “rompimento de obstáculo” para qualificar o crime e, com isso, “incorreu, a meu ver, bis in idem [dupla punição pelo mesmo fato] ao invocar a circunstância na fixação da pena”. 

A circunstância de “maus antecedentes” foi considerada pelo TJ-PI com base no trâmite de quatro processos contra o réu, nenhum deles com decisão transitada em julgado. Segundo o ministro, o Supremo iniciou a análise do Recurso Extraordinário (RE) 591054 quanto à viabilidade da consideração de inquéritos e ações penais, sem decisão condenatória transitada em julgada, como maus antecedentes. Ele e outros ministros já votaram pela inviabilidade desse reconhecimento. 

O relator ressaltou que o julgamento do RE está suspenso mas, ainda que não haja pronunciamento final do Plenário, “a Segunda Turma tem afastado a consideração das ações e investigações em andamento como circunstância desfavorável”.

Repouso noturno

De acordo com o relator, na terceira fase da dosimetria da pena, foi aplicado o aumento de um terço pela majorante repouso noturno. Ele verificou que tal circunstância não foi discutida no STJ e nem levantada no HC. “No entanto, proponho que essa majorante seja analisada de ofício pela Segunda Turma do Supremo”, afirmou. Segundo o ministro Gilmar Mendes, o furto noturno [aquele praticado durante o repouso noturno] está previsto no parágrafo 1º, do artigo 155, do CP. “Está antes da qualificadora e essa localização seria ilógica, a meu ver, se a majorante fosse destinada a incidir sobre a pena qualificada do parágrafo 4º”, salientou. 

Além disso, ele considerou que a pena qualificada é o dobro da pena do tipo simples, “revelando a desnecessidade da acumulação das penas previstas no parágrafo”. “A doutrina e a jurisprudência [do STJ] entendem que a majorante do repouso noturno e a qualificadora não se acumulam”, destacou o ministro. 

Ele explicou que a pena do furto noturno é a mesma cominada no furto simples, porém aumentada de um terço, “o que não ocorre com o furto qualificado cuja pena é mais grave, além de ser um crime autônomo”. 

Conclusão do voto 

O relator votou pela concessão do HC para determinar que o juízo da condenação refaça a dosimetria da pena, deixando de considerar, na primeira fase, a patente culpabilidade, o rompimento de obstáculos e os maus antecedentes como circunstâncias desfavoráveis. 

Segundo o voto do ministro Gilmar Mendes, deve ser realizada a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. De ofício, ele concedeu a ordem de habeas corpus para afastar a aplicação da majorante do artigo 155, parágrafo 1º, do Código Penal, podendo o repouso noturno ser considerado na primeira fase da aplicação da pena. 

Processos relacionados: HC 122940 

Fonte: Supremo Tribunal Federal