Por Adriana Irion
BERNARDO UGLIONE BOLDRINI, 11 anos, percorreu o ciclo
completo da chamada rede de proteção à infância de Três Passos. Mesmo assim,
sofreu maus-tratos até ser assassinado pela madrasta com a suposta anuência do
pai, em 4 de abril. Quase seis meses depois, os passos dados pelo menino ainda
reverberam. Perturbam quem tinha o dever legal de agir (Conselho Tutelar,
escola, Ministério Público) e angustiam uma comunidade que se pergunta: o que
poderia ter sido feito para protegê-lo? Muitos admitem arrependimento, seja
pela incapacidade de enxergar uma violência não expressa em marcas no corpo,
seja por ver uma barreira na condição financeira e social da família. Alegam
que a rede tem limite de atuação. Mas se Bernardo chegou sozinho até a última
instância desse sistema a Justiça , e nem isso foi suficiente, o que fazer?
Resta refletir para costurar uma rede com menos brechas.
Bernardo, se você fosse personagem de uma história, qual gostaria
de ser?
– Nenhum. Ninguém me conta histórias!
A conversa de Bernardo Uglione Boldrini com uma médica amiga
de sua família ocorreu muito antes de o menino franzino de 11 anos tornarse
personagem da mais dolorosa história que Três Passos poderia contar ao país.
A de uma criança de classe média alta, órfã de mãe,
maltratada em casa, que mendigava amor, comida e roupas pelas ruas da cidade,
que foi ao fórum sozinha pedir ajuda e acabou morta e enterrada numa cova rasa
pela madrasta, Graciele Ugulini, supostamente com o conhecimento do pai, o
médico cirurgião Leandro Boldrini.
A história que Três Passos narra hoje é permeada por culpa e
questionamentos. O que cada um poderia ter feito melhor? A comunidade reclama
ação mais contundente por parte das autoridades que têm o poder de investigar e
de tirar uma criança de casa. Agentes da rede de proteção queixam-se de que a
população não denuncia.
– A gente não está procurando culpados, mas um pouco cada um
se omitiu. Nos sentimos em luto quando aconteceu. Nos sentimos muito mal,
pensamos o que faltou a gente fazer mais, o que aconteceu? – questiona-se
Deborah Granich, uma das conselheiras tutelares que atenderam o menino.
Os gritos de socorro de Bernardo foram muito além do que os
31 gravados em áudio e vídeo pelo próprio pai durante uma briga em casa, em um
sábado de agosto do ano passado. A única coisa que o filho de Boldrini não fez
foi verbalizar a tortura que sofria. O resto estava lá para ser visto.
Bernardo não tinha as chaves de casa. Vivia sempre na rua.
Insistia em dormir na casa de colegas. Precisava ser acordado pela secretária
da escola para não perder aula. Tinha dificuldades de aprendizado. Fazia temas
e trabalhos com famílias amigas ou até com a secretária da clínica do pai. Não
podia usar a impressora em casa. Não podia usar a piscina, nem brincar com a
irmã. Não tinha janta, ia para escola sem lanche. Tinha sinais de falta de
higiene pessoal. Andava malvestido – costumava trajar manga curta em dias
frios. Pai e madrasta não participavam das atividades escolares, sequer foram
na Primeira Comunhão. Um código de convivência o impedia de falar com a
madrasta. Era proibido de mencionar a mãe, morta em 2010. Carregava na mochila
e tomava sozinho três medicações controladas. No final de 2013, aparentava
desnutrição. Em 2014, pediu ao juiz para trocar de família.
Mas ninguém supôs que o menino de classe média alta, filho
do mais famoso médico da cidade e enteado de uma enfermeira, estava sob perigo
intenso. É o que aparece nas entrelinhas de depoimentos prestados à polícia
depois da morte de Bernardo e em conversas sempre interrompidas pelo choro.
– A gente analisa que essas pessoas (um médico e uma
enfermeira) estão ali para salvar vidas, não destruir. A gente tem eles como
referência – comenta Isoldi Schumann, conselheira tutelar.
Quando as primeiras suspeitas chegaram ao Conselho Tutelar
de Três Passos, uma colega de Isoldi e de Deborah pediu para não atuar na
apuração: tinha um familiar em tratamento com Boldrini e havia trabalhado com
Graciele.
– É o problema de se enxergar as pessoas pela ótica da
profissão que exercem, e aqui, no Interior, a gente veste a camisa da
profissão. Todos te veem na rua como a jornalista, a psicóloga, a assistente
social. Ninguém te imagina com dois discursos, que tu cuide teus pacientes e
não cuide de teus dependentes, teus afetos. As pessoas não queriam se
intrometer nessa família – analisa a psicóloga Ariane Schmitt, amiga de
Boldrini.
Aquele que parece ter sido o primeiro ente público a se
preocupar com o comentário generalizado na cidade de que Bernardo era negligenciado,
o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), agiu, mas
não sem um certo temor.
– Imagina nossa situação: ele (Boldrini) poderia nos
processar. Dizer “o que essas mulheres estão fazendo aqui?” Ele poderia. Nós
não tínhamos amparo legal para estar lá. Somos órgão de atendimento. Não somos
órgão de averiguação, com poder de intervenção. Esse poder é todo do Conselho
Tutelar – conta Raquel Raffaelli, psicóloga do Creas, que é ligado à prefeitura
de Três Passos.
Ela e a colega Juliana de Quadros, assistente social,
contataram o Conselho em busca de “suporte legal” para atuar. Juliana esteve
com um conselheiro no Colégio Ipiranga para ouvir Bernardo, em julho de 2013.
– Ele estava meio abatido, mas não falou em maus-tratos –
recorda Nestor Weschenfelder, do Conselho Tutelar.
Creas e Conselho procuraram o pai em mais de uma
oportunidade. Boldrini foi resistente à abordagem, segundo registros. Também
pediram uma avaliação da escola sobre o menino. Entre julho, quando houve as
visitas, e novembro de 2013, quando comentários sobre o estado de abandono de
Bernardo se intensificaram, o caso não teve andamento.
– É importante a sociedade se posicionar. Sem denúncia
formal, nosso poder de trabalho diminui muito. Só tínhamos comentários (em
julho de 2013). Nossa postura foi intervir e aguardar. Depois do que ocorreu, a
gente revisou, revisou e revisou na nossa mente. Qual a conclusão: nós
trabalhamos com situações de violência. E essa situação não se confirmava. Como
é que íamos intervir? O Creas fez mais do que é seu trabalho. Quem apura é o
Conselho, a polícia. A rede tem um limite, tem que respeitar o espaço do outro
– sustenta Raquel.
Em uma das anotações do Conselho Tutelar, foi registrado à
mão: “Fomos no consultório Dr. Boldrini e Colégio Ipiranga. Sobre seu filho
Bernardo, conversamos também com a Psicóloga Denise (do Colégio Ipiranga) sobre
ele, esperar decisão da escola sobre o caso”.
O Colégio Ipiranga, onde Bernardo estudou desde pequeno, é
reticente hoje ao falar do caso. O diretor Nelson Antônio Gabriel Weber garante
que “valores estão sendo trabalhados” com os alunos.
– Questões de família, da vida, de amizade, os valores são
tão amplos, a valorização do ser humano, coleguismo, fraternidade. Isso faz
parte do nosso dia a dia – comenta.
E em relação aos problemas que Bernardo apresentou durante
anos, como dificuldades de aprendizado, falta de lanche a ponto de se tornar
alvo de brincadeiras e ausência da participação da família?
– O Conselho apareceu aqui. Não sei precisar exatamente, sei
que o contato ocorreu. O Conselho Tutelar tinha conhecimento. Tudo foi
conversado. O Bernardo gostava de estar na escola, era acolhido, tinha o
carinho de todos. Se todos tivessem dado a parcela que a escola deu... –
responde o diretor do Colégio Ipiranga.
O conselheiro tutelar Nestor garante que o Colégio Ipiranga
nunca fez registro sobre problemas do aluno, até ser procurado pelo órgão. Em
depoimentos à polícia depois do crime, a coordenadora pedagógica, Simone
Müller, e a psicóloga do Ipiranga, Denise Escher, discorreram sobre
dificuldades do menino, a carência de atenção da família, a falta de lanche, de
jantar, os problemas que ele dizia ter com a madrasta. Tudo era de conhecimento
da comunidade escolar.
Bernardo chegou a virar alvo de brincadeira. A mãe de um
colega dele contou à polícia: “Nesse ano, a turma da escola criou uma
brincadeira, baseada no Bernardo Boldrini, de ‘mendigar o lanche’. Começou com
Bernardo porque ele mendigava o lanche dos colegas”. Nada disso foi comunicado
pela escola a órgãos de proteção à infância.
– Quem enxerga o problema não tem obrigação de resolvêlo,
mas tem de comunicar, levar adiante. Este é um dever da escola – diz a juíza
Vera Deboni, da 3ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre.
O Conselho Tutelar nega que a condição financeira da família
de Bernardo tenha interferido na ação da rede de proteção.
– Para nós, todos são iguais. O Conselho não é só para
pobre. Acontece que, talvez, aqueles gritos (os pedidos de socorro de Bernardo,
gravados pelo pai e que vieram a público na semana da primeira audiência do
caso), por que vizinhos não vieram denunciar no Conselho? Isso a gente pensa
hoje. Por que não vierem denunciar? Medo? Como não ficamos sabendo? A babá, por
que não veio falar para nós? É tudo coisa de se pensar hoje – questiona a
conselheira Deborah.
O assunto da babá é, possivelmente, a informação mais
concreta que surgiu sobre o risco de morte que Bernardo corria. A madrasta teria
tentado sufocá-lo enquanto dormia. Ele acordou sem ar, assustado, e viu
Graciele com um travesseiro na mão. Ela desconversou. O menino não esqueceu. Em
novembro de 2013, ao encontrar na rua a ex-babá Elaine Teresinha Pinto, ele
relatou o episódio. Preocupada, Elaine contatou familiares do garoto em Santa
Maria.
Jussara Marlene Uglione, a avó materna de Bernardo, ficou
quatro anos sem vê-lo, desde a morte da filha, em 2010. Tentou na Justiça
garantir as visitas, mas desistiu em 2011, incomodada com a resistência de
Boldrini. Avó e neto só voltaram a se ver nas férias de 2014.
– Eu lutei (pelo Bernardo) até onde pude – diz a avó
materna.
Após avisar o Conselho Tutelar de Santa Maria, Marlon
Taborda, advogado de Jussara, enviou ao Conselho de Três Passos e-mail falando
da suspeita de tentativa de homicídio e das condições de abandono. Também
telefonou para reforçar o assunto, que não despertou a atenção dos
conselheiros.
Os conselheiros justificam não ter apurado porque os
relatórios sobre Bernardo já estavam prontos, sendo encaminhados ao Ministério
Público, acompanhados do e-mail vindo de Santa Maria.
– Isso foi para o MP. A polícia devia investigar. Não
podemos responder ofício para advogado – diz Deborah.
– Se essas denúncias foram para Santa Maria, lá deveria ter
sido feito registro policial – reforça Isoldi.
Em depoimento à polícia, Rosani do Nascimento, a conselheira
que pediu para não trabalhar no caso de Bernardo, afirmou: “Que receberam, no
final do ano passado, uma denúncia do advogado da avó de Bernardo de que este
teria sofrido tentativa de asfixia, mas não deram muita importância porque já
haviam falado com Bernardo e ele não havia relatado nada”.
Bernardo não relatou. Mas não foi perguntado sobre o
episódio.
O coordenador do Conselho em Três Passos, Helio Eberhardt,
esclareceu à polícia: “Que não sabe informar se algum dos conselheiros chegou a
averiguar a denúncia da tentativa de asfixia. O depoente não tinha
conhecimento, a não ser através do conteúdo do e-mail encaminhado pelo Conselho
Tutelar de Santa Maria”.
Para a Polícia Civil, o assunto merecia investigação.
– Se tivesse chegado ao conhecimento da polícia a questão da
asfixia, eu teria feito uma ocorrência, instaurado inquérito e ouvido as
pessoas. Ouvido a Elaine (ex-babá), o Bernardo, a madrasta, o Leandro. Teríamos
investigado, que é nosso papel – diz a delegada Caroline Bamberg Machado.
Até Bernardo sumir, a delegada não sabia, mas outro episódio
envolvendo o menino passou despercebido pela polícia. Em meados de junho de
2013, Boldrini foi à delegacia mostrar um vídeo que fizera em seu celular. Nas
imagens, Bernardo aparecia empunhando uma faca e um facão, e sofrendo
provocações por parte do pai. Boldrini afirmou ao policial que queria se
“precaver”. Não se sabe de quê. O policial apenas orientou o médico a procurar
o Conselho Tutelar. Se tivesse feito uma ocorrência, o assunto passaria por
análise da delegada. Só após o sumiço de Bernardo o policial informou o fato
ocorrido 10 meses antes da morte do menino. A orientação do Departamento
Estadual da Criança e do Adolescente é de que sempre seja feito o registro
policial.
Caroline, responsável pela investigação do crime, lembra da
última vez que viu Bernardo na escola:
– Eu estava caminhando e ele também, me olhando. Ele andava
e me olhava. Hoje, penso se ele queria me falar algo.
Em agosto de 2013, o drama vivido por Bernardo mais uma vez
esteve ao alcance de autoridades. Policiais militares estiveram na casa de
Boldrini na noite em que o menino sofreu xingamentos, humilhações e ameaças
veladas da madrasta, e berrou por socorro 31 vezes. Tudo foi registrado em um
celular, acionado pela madrasta. No áudio, recuperado por peritos, é possível
ouvir quando o médico diz que há policiais na frente da casa:
– Ó, eu faço tudo que é coisa certa. Tem polícia na frente
da minha casa sábado de noite, né.
Não se sabe o que os PMs conversaram com Boldrini e se
chegaram a ver e falar com Bernardo. Quando a gravação veio a público, na
última semana de agosto, Zero Hora pediu detalhes sobre o atendimento, mas a
Brigada Militar não tem registro, e abriu uma sindicância para apurar o que
houve.
– Não foi ocorrência específica no Boldrini. Segundo estamos
levantando, foi repassado para a sala de operações que havia “gritos próximo à
caixa de água” e ponto (a sede da Corsan fica na frente da casa de Bernardo).
Foi despachada viatura. Durante a averiguação, se bateu em residências
perguntando quem ouviu, e se bateu na casa do Boldrini também. Estamos apurando
quem foi atender e como foi o atendimento – diz o comandante do 7º BPM, major
Diego Munari.
A “rede de proteção” voltou a se movimentar em novembro. Há
informações de que naquele mês Bernardo esteve doente – com tosse, febril, com
infecção respiratória. Por intervenção de uma amiga da família, foi levado por
uma secretária de Boldrini a uma consulta com José Roberto Sartor, seu
ex-pediatra. Foi ele que, ao saber do desaparecimento, disse à esposa:
“Apagaram o guri”. Ao explicar a afirmação em depoimento à polícia,
posteriormente, Sartor, amigo de Boldrini, contou que a fez em função da
“situação de abandono” que Bernardo sofria.
Não há informações sobre o médico ter feito algum comunicado
a órgãos de proteção à infância.
No final de novembro, em uma reunião com agentes da rede de
proteção, a promotora Dinamárcia Maciel de Oliveira foi informada dos problemas
com Bernardo. Solicitou relatórios. Foi só nessa época que os órgãos de
proteção registraram em documento o que havia sido apurado em julho.
Em 6 de dezembro, inconformado com a falta de retorno do
Conselho Tutelar sobre seus pedidos, o advogado Marlon Taborda, de Santa Maria,
enviou e-mail ao Ministério Público descrevendo o estado de abandono de
Bernardo e a suspeita de que a madrasta tentara sufocá-lo. O assunto não foi
verificado pelo MP. Segundo a promotora, a ex-babá, que era uma das fontes da
informação da tentativa de sufocamento, não foi procurada por não ser
“testemunha presencial, não trabalhava há vários anos na casa” de Boldrini.
Nesse período de apuração do MP, pai e madrasta não foram procurados, nem
Bernardo.
Em 16 de dezembro, a promotora instaurou procedimento
administrativo para apurar a situação de Bernardo. Foram adotados os trâmites
burocráticos para a avó ser ouvida em Santa Maria sobre o interesse de assumir
a guarda provisória do neto. Enquanto o expediente para possível troca de guarda
tramitava no MP, ao retornar das férias passadas com a madrinha em Santa Maria,
o filho único de Boldrini surpreendeu a Justiça ao ir sozinho ao fórum. Dia 24
de janeiro, Bernardo saiu da loja de Juçara Petry – onde era acolhido, se
alimentava, brincava e fazia os temas –, caminhou 93 passos e falou firme ao
guarda do fórum:
– Quero falar com o juiz.
Foi levado à sala do Centro de Defesa dos Direitos da
Criança e do Adolescente (Cededica).
– Sou Bernardo, sou filho do médico Leandro Boldrini. Quero
falar com o Dr. Fernando, o juiz – disse o menino a Matheus Menezes de Moura,
coordenador de medidas Socioeducativas do Cededica.
– Mas por que tu queres falar com o juiz?
– Estou recebendo maus-tratos da minha madrasta e eu queria
falar com o juiz a respeito disso.
– Calma, não é assim, vou te levar para o Conselho Tutelar.
– Mas eu queria falar com o juiz.
Convencido pela insistência de Bernardo, Matheus o levou ao
juiz, que ouviu as queixas do menino e o encaminhou para falar com a promotora
Dinamárcia.
O Ministério Público não registrou formalmente o que
Bernardo contou ao longo de 40 minutos. A promotora achou “desnecessário”. Mas
depois pediu ao Cededica que registrasse em ofício o que o menino contara lá,
antes de ser levado para falar com o juiz e a promotora. Em palestra recente,
em Santa Maria, Dinamárcia confirmou que a história não está registrada em
nenhum lugar, “a não ser na minha mente e aqui (mostra o coração), como mãe que
sou”. E recordou trechos do que Bernardo disse:
“A minha madrasta é uma bruxa, ela me xinga de tudo que você
possa imaginar, e o meu pai dá razão para ela. Eu não tenho comida de noite
porque não tem tata (empregada, babá). Eu tenho que tomar leite, comer banana,
fazer ovo cozido ou então eu vou comer na casa dos meus colegas. Não tenho
chave de casa, ela briga comigo e eu tenho que esperar 10 e meia da noite o pai
chegar para eu poder entrar em casa. E eu não aguento mais isso. Deram todos os
meus cachorros. E hoje foi a gota d’água, porque ela me chamou de veadinho e eu
atirei um copo nela. O copo não pegou, mas eu estou com medo, estou cansado, eu
nunca tinha feito isso de atirar um copo nela. Então eu não quero mais ficar
naquela casa. Eu estou na casa da tia Ju (Juçara Petry). E eu queria te dizer
assim, promotora: eu quero que a Ju e o marido dela sejam meus novos pais,
porque eu quero ter pais com amor. ”
Ao retornar para a loja da “tia Ju”, Bernardo estava feliz.
– Ele me disse “pronto, falei tudo, bluft” – lembra Juçara,
para quem Bernardo não detalhou a conversa com as autoridades.
Uma semana depois, a promotora ingressou com ação protetiva
para troca provisória da guarda de Bernardo, sugerindo que ele ficasse com a
avó materna. O expediente tomou por base relatórios produzidos em novembro pelo
Conselho Tutelar, Creas e escola.
– A postura de Bernardo, ao procurar, sozinho, atendimento
no Fórum, foi determinante para que esta promotora deliberasse pela necessidade
de ajuizar, de pronto, uma Ação Protetiva em favor do menino, para fazer cessar
a situação de vulnerabilidade à qual estava exposto. Havia uma criança, órfã de
mãe, que buscava, solitária, outra família, noticiando-nos atos de abandono e
exclusão por parte do pai e da madrasta – disse Dinamárcia em entrevista por
e-mail.
Ao receber a ação do MP, o juiz Fernando Vieira dos Santos
optou por marcar uma audiência de conciliação entre Bernardo e o pai, sem analisar
os demais pedidos. Um deles era para que Bernardo e o núcleo familiar fossem
submetidos a avaliação psicológica. A promotora não recorreu.
– Qualquer dos órgãos de proteção que tenha tido
conhecimento do caso poderia realizar monitoramento espontâneo, não havia
necessidade de determinação judicial. Adverti ele (Boldrini) a respeito das
represálias ao menino; e não seria o acompanhamento da família que impediria
que ocorressem, na medida em que a execução do delito revelou algum calculismo
alheio a qualquer monitoramento – disse em entrevista por e-mail o juiz
Fernando Veira dos Santos.
O Conselho Tutelar, que acompanhara o caso de Bernardo, só
soube da audiência no fórum depois do sumiço do menino.
– Na audiência, é importante destacar, não estávamos
tratando (até onde se sabia e nos era possível saber), com um pai “infrator”;
longe disso. O pai era um cidadão sem maus antecedentes, com atividade
conhecida na cidade e sob o qual pesava, “apenas” (não acho que isso seja
pouco, tanto que ajuizei a ação), a notícia de ser negligente com o filho. Não
havia notícia de violência contra Bernardo, já que a única menção (da babá),
não se confirmou nas entrevistas do menino – afirmou, por escrito, a promotora
Dinamárcia.
O encontro entre Bernardo e o pai, diante do juiz e da
promotora, ocorreu em 11 de fevereiro. Clandestinamente, Boldrini gravou em seu
celular parte da audiência. O material foi recuperado por peritos e veio a
público recentemente. Mas o que foi prometido por Boldrini ao filho, e o que o
menino falou, não chegou a ser gravado nem registrado formalmente.
Conforme o juiz, não é comum “registrar por escrito diálogos
informais mantidos em ambiente de conciliação”. Ele também não autorizou
gravação da sessão. O que se sabe é que Boldrini pediu uma chance de retomar a
relação com o filho. Bernardo aceitou mediante singelas condições: queria ter a
chave de casa, poder brincar com a irmã e ter um animal de estimação.
Feita a “conciliação”, pai e filho deveriam retornar ao
fórum 90 dias depois, em 13 de maio, para reavaliação. Nos últimos dias de
vida, Bernardo havia acertado com Boldrini que teria um aquário. O menino amava
animais, sobretudo cachorros. Quando a mãe, Odilaine Uglione, era viva, tinha
vários cães em casa. Depois da morte dela, Boldrini se livrou de todos, além de
queimar pertences e fotos de Odilaine, uma das queixas de Bernardo aos
conselheiros tutelares.
Até 11 de fevereiro, quando Bernardo deixou o fórum com o
pai acreditando que sua vida mudaria, nenhum agente da rede de proteção ou
autoridade havia perguntado ao menino sobre a tentativa de asfixia que teria
sofrido. Hoje, todos dizem que ele jamais falou sobre qualquer tipo de agressão
ou ameaça física. O único relato que Bernardo fez sobre isso, porém, foi
desconsiderado por todas as instâncias da rede. A madrasta, que seria a
principal peça de conflito no lar e de quem ele reclamava sofrer ofensas, nunca
foi procurada.
Foi da madrasta que pelo menos três pessoas ouviram
afirmações sobre a intenção de matar ou, de forma mais genérica, livrar-se de
Bernardo. Uma secretária de Boldrini, Andressa Wagner, e uma técnica de
enfermagem, Marlise Cecília Renz, que trabalhavam com o casal, sabiam que
Graciele não gostava do menino. No dia em que Boldrini foi chamado ao fórum,
Graciele disse, na frente da secretária, que daria um fim naquela situação e
que tinha gente para fazer isso.
Uma das funcionárias pensava até em sair do emprego, mas
nenhuma avaliou a possibilidade de contar o que sabia à polícia ou a algum
órgão de proteção. Sandra Cavalheiro, amiga de Graciele e testemunha no
processo, foi procurada meses antes do crime pela madrasta, que dizia que ela e
o marido pretendiam se livrar de Bernardo. Também não contou a ninguém.
Por três anos, por vontade e esforço próprios, Bernardo
frequentou a catequese na Paróquia Santa Inês. Levou documentos, tratou de sua
inscrição, foi coroinha.
– Ele era malcuidado, quase sempre chegava atrasado, tinha
falta de higiene, a gente via que não tinha um adulto dando atenção a ele. De
minha parte nunca falei nada para ninguém, mesmo porque não sabia o que se
passava dentro de casa. Eu achava que era ele, que estava na idade, né, 11
anos, de levantar tarde. Nunca pensei que tivesse passando alguma coisa dentro
de casa – conta Ivonete de Mattos, catequista de Bernardo em 2013. – Para mim,
ele nunca reclamou de nada. Depois eu me senti meio culpada, porque a religião
é fundamentada na família, a gente fala muito em família, a gente incentiva as
crianças a respeitar pai e mãe. De repente, quantas vezes que a gente falava
que pai e mãe é o principal dentro de casa e ele ficava triste ouvindo isso...
A catequista não conheceu o pai e a madrasta de Bernardo.
Boldrini e Graciele não iam às missas, às reuniões de pais nem estiveram
presentes na Primeira Comunhão.
– Quando aparecia para contribuir com o dízimo, o pai falava
do excesso de trabalho. A gente procura entender a situação das famílias. O
caso agora está na Justiça. Não há mais o que comentar – resume a coordenadora
da catequese, que se identificou apenas como Daniele.
Em um dos relatórios da rede de proteção sobre Bernardo,
consta: “A comunidade de Três Passos, em geral, sabe que Bernardo é
negligenciado pelo pai e pela madrasta”.
– Ele sempre era acolhido, alguém sempre levava ele para
casa. Então, talvez, por isso, perante os olhos da sociedade, (a situação) não
parecia tão grave – reflete a conselheira tutelar Isoldi.
– A gente sabia que no finais de semana ela estava na casa
das pessoas, mas pessoas da alta sociedade, não era de qualquer um, não estava
em casas correndo riscos. Nossa obrigação é investigar todos os casos que
chegam, mas não somos investigadores. Quem tem que averiguar é a polícia. Temos
um limite – atesta Nestor, colega de Isoldi.
– Nós encaminhamos certo, fizemos nosso trabalho certo. Pena
que aconteceu de ninguém, de não ter passado na cabeça de ninguém, nem na do
juiz, nem na nossa, de que chegaria nesse ponto – lamenta a conselheira
Deborah.
No começo de abril, enquanto o plano para sua morte era
finalizado com a compra de remédios analgésicos para dopá-lo, de uma pá e de
cavadeira para abrir a cova e de soda cáustica para corroer seu corpo, Bernardo
cuidava dos detalhes para a concretização de um sonho: ter um aquário.
Nos dias 2 e 3 de abril, Bernardo percorreu floriculturas e
ferragens, além de consultar livros, a fim de reunir o material para decorar o
aquário de segunda mão que ganhara de uma amiga da falecida mãe. Foi também
nestes dias, segundo a investigação da polícia, que a madrasta de Bernardo e
uma amiga, Edelvânia Wirganovicz, compraram remédios, equipamentos e abriram o
buraco para enterrá-lo, em Frederico Westphalen.
Na tarde de 3 de abril, Bernardo vendeu rifas da escola. À
noite, telefonou três vezes para a comerciante que havia lhe dado o aquário.
Ansioso, queria confirmar se podia mesmo buscar o presente no dia seguinte. Na
sexta, 4 de abril, estava radiante. Almoçou em casa com o pai e a madrasta,
repetiu a comida, pôde brincar com a irmã. Logo depois, ainda usando o uniforme
do Colégio Ipiranga, embarcou no carro de Graciele, supostamente para buscar o
aquário. Mas a esperança e a ousadia do menino de 11 anos arrefeceram diante de
doses excessivas de Midazolan.
Já com a medicação agindo no corpo, fez a última ligação
registrada em seu celular para quem considerava como mãe: a comerciante Juçara
Petry. Não se sabe se tentava pedir socorro ou só queria conversar. A ligação
não chegou a completar. O aparelho nunca foi achado pela polícia. Juçara não
estava em Três Passos. Retornou na noite daquela sexta-feira, quando Bernardo
já estava morto.
A notícia do sumiço se espalhou pela cidade na noite de
domingo, dia 6, quando o pai fez o registro policial. Na segunda-feira, o
alarme soou nos órgãos de proteção. O Conselho Tutelar buscou informações na
escola e fez ofício à promotora. Diante da notícia, Dinamárcia fez novo pedido
ao juiz de suspensão de guarda do pai. Desta vez, o juiz, em sua decisão,
escreveu longas considerações: “Aparentemente, Bernardo, após o falecimento de
sua mãe e da constituição de nova família pelo pai, passou a ser um estorvo à
nova instituição familiar. Logo, se ele estava longe, as conveniências estavam
atendidas: infelizmente, essa é a realidade. Frente a essa situação, se – e a
condicional é o que nos resta, neste momento – Bernardo for encontrado com vida
e em boas condições de integridade pessoal, seu retorno à degradada realidade
que enfrenta em seu lar parental é a medida menos acertada no momento. A
suspensão da guarda, pretendida pela agente ministerial, é a medida deveras
acertada”.
As buscas duraram até 14 de abril, quando Edelvânia
confessou o crime e indicou o local onde estava o corpo. Além dela, o pai e a
madrasta tiveram a prisão decretada nesse dia, pelo juiz Fernando.
– Esse caso nos traz a necessidade de repensar questões do
cotidiano, de que o sistema de garantias como um todo não tem esse olhar com o
mesmo cuidado que teria se fosse um filho da classe pobre. Nesse particular, a
classe pobre está, entre aspas, melhor assistida. Famílias com melhor poder
aquisitivo naturalmente não aceitam essa intervenção. E isso, muitas vezes,
inibe o Conselho Tutelar, o Ministério Público, a escola – comenta Vera Deboni,
juíza da 3ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre.
– Estamos preparados para identificar e agir nos casos de
violência física, facilmente detectados, mas não para perceber a presença da
negligência severa e da violência psicológica. Um importante instrumento para
identificar a gravidade da situação é a avaliação e o acompanhamento
psicológico – aponta a procuradora Maria Regina Fay de Azambuja, coordenadora
do Centro de Apoio da Infância e Juventude do MP.
Quase seis meses depois do crime, a história do menino que
não queria ser personagem algum ainda inquieta a cidade. Na casa dos Petry
ficou muito de Bernardo: trabalhos escolares, fotos, bilhetes. Era lá que ele
fazia temas, estudava, cortava unhas, brincava de fazer a barba com o “tio
Carlinhos”, passava finais de semana, comemorava seus aniversários, fazia pão –
adorava comer a massa crua – e experimentava com a “tia Ju” outras receitas, como
de cupcake. Muito díficil encontrar foto de festa da família Petry em que
Bernardo não apareça. E é comum o prato de “Bê” surgir na mesa do almoço.
Juçara se atrapalha, ainda o espera chegar.
– Gostaria que no meio desse turbilhão que se abateu sobre
nós com a morte do Bê, a gente consiga passar para as autoridades que podem
fazer alguma coisa, que podem tirar uma criança de casa, que deem um pouco mais
de atenção para esses inocentes. Sinto muita falta dele, tem dias que é bem
complicado – conta Juçara, a mãe que Bernardo queria. – Tu vai almoçar, parece
que ele está chegando, vai trabalhar, parece que ele está vindo. Ele estava
sempre junto. Agora está pior, é muita saudade. No início, era aquela luta para
achá-lo, depois esse turbilhão de informação. A gente não tinha ideia do que
ele passava. Como ele não falou nada, acho que temia por nós. A gente se
pergunta: será que ele não deu uma pista e não vimos? Aí, depois, vem aquela
dor: meu Deus, por que eu não arranquei ele de lá? Talvez ele estivesse salvo,
hoje estaria aqui. Conosco.