Migalha, bagatela e ninharia são alguns sinônimos
para o termo “insignificante” – uma definição que, para qualquer cidadão, não
retrata valores como dez ou vinte mil reais.
Mas quando o bolso é do estado
brasileiro, os valores podem ser considerados insignificantes, a ponto de
descaracterizar como crime o descaminho que sonega essas quantias? Há mais de
dez anos o Brasil vem deixando de promover o ajuizamento de ações de execução
por dívidas ativas da União oriundas de impostos sonegados em crimes de
descaminho (artigo 334 do Código Penal) quando o valor devido é considerado
pequeno diante do custo da cobrança.
Seguindo a Lei 10.522/02, a Fazenda
Nacional adotou, em 2004, o limite mínimo de R$ 10 mil para considerar a cobrança
executável. Em 2012, por meio de uma portaria, aumentou o limite para R$ 20 mil
por entender que não é economicamente vantajoso para o erário ajuizar demanda
cujo valor seja inferior a esse parâmetro.
A consequência jurídica dessa opção
fiscal chegou aos tribunais. Os magistrados passaram a aceitar a tese da
absolvição sumária dos réus acusados de descaminho quando o valor dos impostos
sonegados não ultrapassasse o limite utilizado pela Fazenda Nacional para
desencadear a execução da dívida.
Até que o Superior Tribunal de Justiça (STJ),
nesta semana, disparou uma resposta ao que muitos críticos vêm chamando de
distorção na aplicação do princípio da insignificância para o crime de
descaminho.
A Terceira Seção, em julgamento que rebate a jurisprudência construída
nos tribunais superiores, brecou, em parte, o uso do limite administrativo como
parâmetro para a punição pelo crime de descaminho.
Seguindo a posição do
ministro Rogerio Schietti Cruz, a Seção decidiu, por maioria, que o princípio
da insignificância somente deve ser aplicado quando o valor do débito
tributário for inferior a R$ 10 mil, tal qual julgado pelo STJ em recurso
repetitivo de 2009 (REsp 1.112.748). Com isso, o STJ afasta o novo valor de R$
20 mil, adotado pela administração federal na Portaria MF 75/12, e reacende a
discussão sobre o próprio parâmetro anteriormente adotado, o qual, em face do
objeto e dos limites do recurso especial julgado, não pôde ser revisto pela
Terceira Seção.
“Soa imponderável, contrária à razão e avessa ao senso comum
uma tese que, apoiada em mera opção de política administrativo-fiscal, movida
por interesses estatais conectados à conveniência, à economicidade e à
eficiência administrativas, acaba por subordinar o exercício da jurisdição
penal à iniciativa de uma autoridade fazendária”, refletiu Schietti em seu
voto.
Respeito aos precedentes O ministro destacou que o tema já não encontra
mais dissidência nas cortes superiores quanto ao patamar de R$ 10 mil, ainda
que com ressalvas pessoais de alguns magistrados – como as que faz em seu voto.
Ele esclareceu que esta nova posição do STJ, ao rejeitar o valor de R$ 20 mil,
pretende demostrar que as questões podem – e devem – estar sob permanente
reavaliação.
“A mudança é conatural ao direito, que vive na cultura e na historicidade”,
disse o ministro, citando doutrina de Daniel Mitidiero. Schietti entende que
essa reavaliação pode eventualmente dar novos contornos à questão, por meio de
alguma peculiaridade que distinga (distinguishing) ou mesmo leve à superação
total (overruling) ou parcial (overturning) do precedente.
O ministro considera
importante a ampla e exauriente motivação das decisões judiciais, “por meio da
qual seja possível demostrar aspectos jurídicos e fáticos novos, que
justifiquem reavivar a discussão”, e se diz esperançoso de que no Supremo
Tribunal Federal (STF) essa jurisprudência já consolidada – que considera como
penalmente insignificante a ilusão de tributos de até R$ 10 mil – seja
reavaliada.
Opção administrativa
Quando foi editada a Lei 10.522, o seu artigo
10 dizia que seriam arquivados sem baixa na distribuição os autos das execuções
fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União (DAU) de valor
consolidado igual ou inferior a R$ 2.500.
Dois anos depois, a Lei 11.033/04
elevou o valor para R$ 10 mil. Em 2012, por meio da Portaria MF 75, o valor foi
novamente majorado, dessa vez para R$ 20 mil. Isso significa dizer que a dívida
até esse patamar não é executada judicialmente. O relator enfatizou, porém, que
não há renúncia ou perdão do tributo pelo estado, que apenas opta por não fazer
a cobrança judicial em dado momento porque, na sua avaliação, o valor a
executar não justifica o custo da operação.
O aumento do valor decorreu de um
estudo promovido pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), realizado de novembro de 2009
a fevereiro de 2011.
Conforme os resultados, o custo unitário médio total de
uma ação de execução fiscal é de R$ 5.606,67; o tempo médio é de nove anos e
nove meses, e a probabilidade de recuperação integral do crédito é de 25,8%. O
objetivo do aumento do limite é “aprimorar a gestão da Dívida Ativa da União e
otimizar os processos de trabalho, aumentando a efetividade da arrecadação”.
A
partir desse estudo, o Ipea afirmou que R$ 21.731,45 é o ponto a partir do qual
é economicamente justificável promover a execução judicial. Abaixo disso, é bem
provável que a União não consiga recuperar o valor do custo do processamento
judicial.
No mesmo estudo, no entanto, o Ipea externa a preocupação com a
implantação de uma política de recuperação de créditos, “sob pena de sinalizar
à sociedade a desimportância do correto recolhimento de impostos e
contribuições”. Dívida executável Apesar de poder ser requerido o arquivamento
sem a baixa das execuções fiscais já ajuizadas, a dívida não é cancelada e
permanece inscrita na DAU. A Fazenda, então, adota outros meios de cobrança
mais econômicos para esses créditos. Isso também está previsto na Portaria MF
75.
Entre elas está o protesto extrajudicial da Certidão da Dívida Ativa. “Não
houve renúncia do tributo. Como aceitar como insignificante para fins penais um
valor estabelecido para orientar a ação executivo-fiscal, com base apenas no
custo-benefício da operação?”, questionou o ministro Schietti durante o
julgamento. Ao tratar do caso nesta semana, a Terceira Seção assinalou que o
princípio da insignificância não deve estar atrelado à dívida ativa executável
pela Fazenda Nacional. O ministro Schietti considera inconsistente a tese que se
amparou em dispositivos que tratam da execução para conferir autoridade quase
judicial a uma conveniência administrativa.
“É como se o procurador da Fazenda
determinasse o que a polícia deve investigar, o que o Ministério Público deve
acusar e, o que é mais grave, o que – e como – o Judiciário deve julgar”,
argumentou.
Limitações da portaria
Além disso, Schietti questionou a própria
competência do ministro da Fazenda para, mediante simples portaria, alterar um
valor que havia sido fixado em lei. A legislação anterior autorizava o titular
da Fazenda a dispensar a inscrição ou a execução de dívidas quando o custo
administrativo da cobrança não valesse a pena, mas a partir de 2002, com a
promulgação da Lei 10.522, foi estabelecido um limite máximo para essa dispensa
(então de R$ 2.500, mais tarde aumentado para R$ 10 mil pela Lei 11.033).
A fixação legal de um valor máximo, segundo o
magistrado, não mais permite que ele seja elevado por ato administrativo, mas
apenas por lei. Em relação ao caso
julgado pela Terceira Seção, a aplicação do limite de R$ 20 mil – mesmo que
fosse válida sua instituição pela Portaria 75 – esbarrava ainda em outro
problema: o caso ocorreu antes da edição desse ato. Conforme destacou o
ministro do STJ, a Constituição assegura a retroatividade da “lei penal” mais
benéfica para o réu, mas a portaria não é lei, nem é penal.
Mais: nem na área fiscal a portaria
retroage, pois seu texto deixa claro que o novo limite só é aplicável às
execuções futuras. Crimes contra o
patrimônio Os crimes patrimoniais “de
rua”, de que são exemplos mais corriqueiros o furto e o estelionato, têm
recebido tratamento jurídico completamente diverso e bem mais rigoroso se
comparado ao que se dispensa aos crimes contra a ordem tributária e, em
particular, ao crime de descaminho.
A
constatação é do ministro Schietti, que destacou as diferenças não só quanto
aos critérios gerais – definidos em vários julgados do STF para o
reconhecimento da insignificância penal –, como também quanto ao valor máximo a
permitir a incidência do princípio da bagatela.
A Sexta Turma do STJ, por exemplo, deixou de
aplicar a absolvição para casos como: furto de objetos avaliados em R$ 35
subtraídos de uma loja, de madrugada, com arrombamento (HC 192.530); furto de
uma bicicleta, mas em concurso de agentes (HC 213.827); furto de uma colher de
pedreiro avaliada em R$ 4, mediante escalada de muro (HC 253.360). Na Quinta Turma, o repúdio à insignificância
da conduta nos casos de furto também é pacífico para determinadas hipóteses: bens
avaliados em R$ 27, mas com arrombamento de porta (HC 173.543); dois sabonetes
avaliados em R$ 48, mas cujo autor era reincidente (HC 221.927); ferramentas
avaliadas em R$ 100, furtadas do interior de uma residência (REsp 1.331.563).
Violação da isonomia
O ministro Schietti observou que, nos
critérios usualmente empregados para afastar a tipicidade das condutas
analisadas pelo STJ e pelo STF, não se encontra nenhum amparo para abarcar sob
a mesma principiologia a tese da insignificância dos crimes de sonegação fiscal
e de descaminho inferiores a R$ 10 mil.
Nos casos de furto, mesmo quando recuperado o bem subtraído ou quando se
verifica a concordância da vítima em não ver o autor punido, a jurisprudência
não adere à tese de insignificância.
A comparação leva alguns doutrinadores a
entender que há desrespeito aos princípios da isonomia e da
proporcionalidade. O voto também
menciona pesquisa coordenada pelo professor Pierpaolo Cruz Bottini, da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que lançou o olhar sobre os
julgados envolvendo o princípio da insignificância que chegaram ao STF.
O levantamento revelou que, entre 2005 e
2009, em 86% dos casos de crimes contra o patrimônio o valor do bem esteve na faixa
de até R$ 200, quantia infinitamente menor do que a tomada como referência
quando o crime praticado é descaminho.
O bem jurídico Em seu voto, o
ministro Schietti também chama a atenção para outro aspecto que distingue o
crime de descaminho: o objeto jurídico protegido pela norma penal. Ele explica
que não se trata apenas do erário. Os
tributos aduaneiros, que incidem nas operações de entrada e saída de
mercadorias do país, destinam-se também a regular a atividade econômica.
O
Imposto de Importação (II) e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI)
têm, portanto, natureza extrafiscal – são instrumentos fiscais utilizados para
outros fins. Da mesma opinião
compartilha o professor de direito penal Luiz Regis Prado, da Universidade
Estadual de Maringá. O doutrinador ressalta na obra “Curso de Direito Penal
Brasileiro” que o bem tutelado, no que tange ao delito de descaminho, é o
interesse econômico estatal. “Busca-se proteger o produto nacional e a economia
do país”, diz.
Assim também pensa o penalista
Cezar Bitencourt, em seu livro “Tratado de Direito Penal”, onde acentua que a
conduta prevista no artigo 334 do Código Penal afeta a regulação da balança
comercial, a proteção à indústria nacional e o prestígio da administração
pública, especialmente “sua moralidade e probidade administrativa”.
Conduta relevante
A procuradora da República Monique Chequer
igualmente defende a necessidade de haver a desvinculação do bem jurídico
tutelado no crime de descaminho do interesse meramente econômico-fiscal de
ajuizamento das execuções. Em artigo publicado em 2008 no Boletim Científico da
Escola Superior do Ministério Público da União, a procuradora ressaltou o
caráter extrafiscal dos impostos sonegados no crime de descaminho.
Monique Chequer entende que o fato de a
Fazenda Nacional, por questões processuais, estruturais e administrativas,
optar por não executar as dívidas inferiores ao patamar de R$ 20 mil não indica
insignificância sob o aspecto subjetivo material.
Daí porque ela defende que
cada caso concreto seja analisado, para que se entenda seu aspecto global em
relação à extensão da lesão produzida.
No recurso analisado pela Terceira Seção do STJ, o Ministério Público
recorreu de decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que manteve a sentença
de absolvição sumária de um réu acusado de descaminho. Morador de Minas Gerais, ele foi abordado
pela Polícia Rodoviária Federal numa estrada do interior do Paraná. Retornava
de Foz do Iguaçu, em um táxi, com quase R$ 30 mil em mercadorias importadas
clandestinamente. Os tributos iludidos (IPI e II) foram calculados em R$
13.224,63. Absurdos O entendimento de submeter o prosseguimento
da ação penal à decisão administrativa da Fazenda faz com que absurdos judiciais
aconteçam.
O ministro Schietti cita como exemplo o caso de descaminho realizado
com o auxílio de funcionário público. Enquadrando-se o valor do tributo
sonegado no limite administrativo, haveria a estranha absolvição de um réu e a
condenação do servidor público pelo crime de facilitação de contrabando ou
descaminho (artigo 318 do Código Penal).
Em outro exemplo, no caso de produtos importados à margem da lei, seria
possível ter a absolvição do réu acusado de descaminho, mas a condenação do
autor do crime de violação de direitos autorais (artigo 184/CP) ou de
receptação (artigo 180/CP). O ministro
Schietti ainda ressaltou o compromisso assumido pelo Brasil de combater o
contrabando e o descaminho na Convenção sobre Repressão do Contrabando (Decreto
2.646/38) e na Convenção para Combater a Evasão Fiscal (Decreto 972/03), esta
firmada com o Paraguai.
Ou seja, o Brasil se comprometeu a combater e, mediante
o devido processo legal, responsabilizar e punir autores de crimes de
contrabando e descaminho. O relator vê
na posição que até aqui vem sendo adotada pelo Judiciário o risco de sinalizar
à sociedade que o estado não tem interesse em cobrar tributos sonegados ou
iludidos e, mais ainda, que não se interessa em punir quem pratica crimes de
sonegação de tributos e de descaminho. Rogerio Schietti entende que é
precisamente porque não houve efetiva atuação da esfera administrativa que a
intervenção penal é mais necessária.
“Para um país que sonha em elevar sua economia a um grau de
confiabilidade, em distribuir renda de modo justo e dar tratamento isonômico a
todos os seus cidadãos (artigo 5º, caput, da Constituição da República), é
incompreensível que se consolide uma jurisprudência tão dúctil na interpretação
de condutas que, ao contrário de tantas outras tratadas com rigor infinitamente
maior, causam tamanho desfalque ao erário e, consequentemente, às políticas
públicas e sociais do país”, concluiu o ministro.
Acompanharam o relator os ministros Felix
Fischer e Maria Thereza de Assis Moura e os desembargadores convocados Ericson
Maranho e Walter de Almeida Guilherme. Votaram em sentido contrário, para que
se negasse o recurso do MP, os ministros Sebastião Reis Júnior, Nefi Cordeiro,
Gurgel de Faria e o desembargador convocado Newton Trisotto. REsp 1393317
Fonte: Superior Tribunal de Justiça
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