Por Lenio Luiz Streck(*)
*Artigo publicado originalmente na edição desta sexta-feira (18/5) do
jornal Folha de S.Paulo.
“Matem-nos todos. Deus saberá
reconhecer os seus!” Diz-se que essas foram as palavras ditas pelo abade
Arnoldo de Amaury, determinando a aniquilação total dos cátaros que se
escondiam na fortaleza de Béziers, no Languedoc, em julho de 1209. É que dentre
eles havia cristãos. Eram as cruzadas do Papa Inocêncio III. Os cátaros eram
dissidentes. Considerados hereges. Não “rezavam” pela cartilha da igreja.
Pois hoje parece que a defesa da
presunção da inocência, claramente constante na “Bíblia da democracia”, a
Constituição (“Livro Defesas”, 5, 57 e em “Processus” 283,1), parece ter
transformado seus adeptos em hereges jurídicos. A tese defendida pela mídia e
por tribunais como o TRF-4 é a seguinte: é automática a prisão após condenação
em segundo grau. E se alguém pergunta: “Mas se o réu tiver bons antecedentes e
respondeu ao processo em liberdade?” A resposta — punitivista — é: “Não
importa. Deve ser preso”; “Temos de acabar com a impunidade”; “A Constituição é
leniente”; “Temos de combater os cátaros”. Por isso o TRF-4 até elaborou a
Súmula 122, pela qual várias pessoas já foram presas.
O que poucos se deram conta é que
nem o Supremo Tribunal Federal concorda com essa automaticidade. Só dois
ministros (Luiz Fux e Roberto Barroso) votaram pela solução radical. Desde o
ministro Teori e até mesmo pelo voto do mais conservador dos ministros, hoje,
Edson Fachin, essa solução foi apresentada. Eles falaram “possibilidade” de
prisão. Isso quer dizer que a prisão em segundo grau não decorre simplesmente
da decisão condenatória.
Tem-se, assim, um impasse: dos
cinco ministros que desconsideram a presunção da inocência (atenção: a ministra
Rosa disse ser a favor da presunção), três admitem que ela é apenas possível
(Cármen, Fachin e Moraes). Logo, a ADC 54 colocou o STF em uma sinuca de bico.
Se todos confirmarem seus votos (mesmo que a ministra Rosa vote contra a
presunção), as prisões automáticas são todas inconstitucionais e ilegais.
Raciocinemos: se a prisão após
decisão de segundo grau é possível, então, por lógica, há casos em que ela não
ocorrerá, porque não necessária. Logo, para ela acontecer, devem estar
presentes os requisitos que permitem a prisão antes do julgamento. Se o réu não
os tiver e ingressar com recurso especial e/ou extraordinário, então poderá
aguardar em liberdade. Simples assim. Isso está implícito no voto do ministro
Teori no HC 126.292 e no voto do ministro Fachin, que aponta, inclusive, para o
efeito suspensivo que pode ser dado ao recurso especial ou até mesmo ao
extraordinário, tudo previsto no Código de Processo Civil de 2015.
Na medida em que apenas os
ministros Luiz Fux e Roberto Barroso querem a automaticidade — eu levantei essa
questão e foi repetida no voto do ministro Gilmar Mendes no julgamento do HC de
Lula —, tem-se que, para vingarem as prisões determinadas sem fundamentação,
será necessário que o STF construa nova maioria, obrigando o próprio ministro
Fachin a endurecer ainda mais o seu voto. Somente se o Supremo tiver seis votos
pela automaticidade é que, por exemplo, a prisão de Lula poderá ser mantida. Só
que disso surge um problema. Se o STF assim decidir, qualquer decisão de
segundo grau ou decisões em instancia única (prefeitos, deputados) acarretarão
— sempre — prisão direta, sem choro nem vela. Esses são os danos colaterais.
Todos serão presos.
Restará, então, o consolo,
recordando o abade Arnoldo de Amaury: “Prendam-nos todos; a deusa da justiça
saberá cuidar dos seus”. Afinal, todo condenado é um herege jurídico. A
Constituição, a Bíblia do Direito, já não protegerá os neocátaros.
Fonte: CONJUR
(*)Lenio Luiz Streck é jurista,
professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do
escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
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