Ana Cláudia Lucas
Para o Blog
7. A VITIMOLOGIA E O DIREITO PENAL
No âmbito do Direito Penal é possível fracionar o impacto do movimento vitimológico em três vertentes:
a) POLÍTICA CRIMINAL
b) VITIMODOGMÁTICA
c) SATISFAÇÃO DA VÍTIMA
a) POLÍTICA CRIMINAL: As referências às vítimas de crimes apresentam duas nuances, originadas pela necessidade de maior relevância para a vítima dentro do sistema penal. A primeira delas identificada com as políticas de exclusão e, outra, com as políticas de inclusão[1].
Na primeira - Políticas de Exclusão - há um antagonismo entre os direitos das vítimas e os direitos dos acusados, e o direito penal está voltado, exclusivamente, para o criminoso, depositando nele uma excessiva quantidade de direitos e garantias diante dos quase inexistentes direitos da vítima. O processo de vitimização inclui a tendência do direito penal em proteger os culpados, descuidando-se dos inocentes, como se a proteção dos inocentes só fosse possível com a exclusão dos culpados[2].
Não raro a defesa dos direitos da vítima está vinculada à idéia de que a garantia de seus direitos está na razão direta da restrição dos direitos dos criminosos. A falsidade dessa tese via de regra não gera crítica nem protestos, principalmente pela mídia, uma vez que ninguém quer se opor ou falar contra uma idéia que parece muito humanitária[3].
No Brasil, a legislação penal sofreu, de certo modo, o impacto dessas idéias e, amparada no movimento da Lei e da Ordem, cujo cerne está caracterizado por um antagonismo entre os direitos das vítimas e o direito dos réus, oportunizou o surgimento do artigo 5º, inciso XLIII da CF., e da Lei 8072, com base na premissa equivocada de que a pretendida proteção das vítimas só é possível com a edição de leis mais rigorosas[4].
Não obstante, essa orientação político-criminal demonstra que o agravamento da situação para o delinqüente, ou para o condenado, além de desrespeitar, muitas vezes, garantias constitucionais, é solução que não atende as justas expectativas das vítimas.
Tais medidas não levam em conta as aportações da Vitimologia, a respeito das verdadeiras intenções das vítimas -menos punitivas do que se possa imaginar - e dos processos de vitimização[5].
Em se tratando das políticas de inclusão, delinqüentes e vítimas estão consideradas dentro de posição menos antagônica do que nas políticas de exclusão, a ponto de indicar que finalidade da pena, além de cumprir o papel frente ao próprio criminoso e à sociedade (fins retributivos e preventivos), pode, também, proporcionar uma maior satisfação dos interesses da vítima[6].
Ou seja, se antes tínhamos uma política criminal voltada para a vítima em potencial, e na medida em que a vítima real passou a ficar insatisfeita diante do jus puniendi estatal, surgiu a necessidade de que o Estado não apenas resolvesse os conflitos penais, mas atendesse, de forma mais veemente, os interesses da vítima.
Na justificativa dessas políticas criminais de inclusão podem ser elencados os seguintes argumentos:
- a finalidade preventiva da pena não é cumprida de forma eficaz;
- os objetivos de prevenção especial também não são atendidos;
- a despersonalização, a desindentidade do conflito é negativa tanto para o acusado como para vítima;
- a pena de multa reverte em benefício do Estado, não da vítima;
- ao ser colocada nessa posição a vítima, além de sofrer a vitimização primária, ainda sofre com a vitimização secundária[7].
Diante disso parecem justificadas e evidentes as perspectivas do surgimento de uma nova política criminal relacionada à vítima.
b) VITIMODOGMÁTICA: não se pode desconsiderar que a o Direito penal sempre interessou-se mais pelo autor do fato criminoso do que pela vítima. Tal constatação é conseqüência natural do processo de lateralização que a vítima sofreu, e sofre, dentro do processo penal. Inobstante, a dogmática penal não poderia furtar-se dos aportes vitimológicos dos tempos mais modernos e, justo por isso, surgiu, nos últimos tempos, a expressão VITIMODOGMÁTICA. Criação de Roxin, a expressão está longe de guardar um sentido único[8].
Para alguns, VITIMODOGMÁTICA é o conjunto das abordagens feitas pelos penalistas que põem em relevo todos os aspectos do direito penal em que a vítima é considerada[9]. E ela - vítima - sempre foi considerada dentro de três momentos importantes do processo penal:
- Na fase prévia à realização delituosa ( porque seu comportamento poderá gerar a exclusão do delito, por sua atipicidade ou licitude);
- Na fase de execução do crime, onde o comportamento da vítima também pode ser avaliado;
- Na fase de consumação, quando o comportamento da vítima pode aparecer para efeitos de concessão de alguns benefícios ao criminoso[10].
Atualmente, a vitimodogmática está voltada para a investigação acerca da contribuição da vítima na ocorrência do delito e da repercussão que tal contribuição deve ter na fixação da pena, ou seja, seu estudo está dirigido ao comportamento da vítima no âmbito da dogmática penal e, em especial, seus reflexos na responsabilidade do autor.
Esse ramo da Vitimologia, segundo Hassemer[11], enfrenta uma questão central que é a seguinte:
QUE PROTEÇÃO DEVE MERECER UM BEM JURÍDICO CUJA TUTELA NÃO INTERESSA AO ÚNICO TITULAR DESSE BEM, SEJA PORQUE ELE PRÓPRIO O COLOCA EM PERIGO OU PORQUE RENUNCIA A SUA PROTEÇÃO?
Há, na doutrina alemã, duas posições sobre a questão[12]:
a) A primeira, moderada, defendida por Hassemer, Günther, dentre outros, que entendem que o comportamento da vítima deve ser considerado no âmbito da fixação juidicial da pena, mas não pode extrapolar os limites da tipicidade, a não ser mediante prévia definição legal;
b) A posição radical, representada especialmente por Schünemann defende que o enfoque vitimológico pode conduzir, em certos casos, não só a uma diminuição da sanção penal, mas a uma total isenção de responsabilidade do autor, pensamento que culmina na construção de um "princípio de auto-responsabilidade".
Nessa concepção o recurso do direito penal, como ultima ratio só seria legítimo se esgotadas, além da formas jurídicas e sociais de controle, também os meios de auto-proteção da vítima. Em outras palavras, a vítima que, podendo e devendo proteger-se não o faz, constitui-se autora de um crime, e o verdadeiro autor em vítima, ficando, por isso, isento de pena.
A vitimodogmática também pode estar relacionada as considerações úteis a determinar a medida em que há co-responsabilidade da vítima na ocorrência do delito, e quais as repercussões do seu comportamento frente a valoração do comportamento do autor. Porque, desconsiderado o papel da vítima se poderá sobrecarregar o autor com uma responsabilidade que não é só sua.
Por outro lado, nessa questão da co-responsabilidade da vítima frente ao crime, não se pode permitir que se perca o norte, o rumo do que se está investigando que é, sim, a responsabilidade do autor, porque uma interpretação extremista pode levar a uma inversão de papéis.
Percebe-se, assim, que o conteúdo da vitimodogmática é amplo, podendo envolver questões relativas à culpabilidade, à tipicidade e à ilicitude, aspectos centrais do direito penal[13].
c) SATISFAÇÃO À VÍTIMA
A percepção sobre a necessidade de reparação à vítima não é novidade. Na Inglaterra, na época já ecoavam vozes, na época de Henrique VIII, no sentido de que o ladrão deveria devolver o produto do roubo ao indivíduo roubado, e não ao rei, como acontece em tantos países.
Não obstante, em se tratando do Direito Penal, sempre fica a indagação:
ONDE E COMO INSERIR NA DOGMÁTICA JURÍDICO-PENAL AS MEDIDAS DE SATISFAÇÃO À VÍTIMA ?
Muito embora não seja fácil e simples a resposta, são poucos os que não concordam com a necessidade de orientar-se o direito penal para a vítima e sua maior satisfação[14]. Isso porque também são maioria as opiniões no sentido de que a neutralização da vítima, pelo direito penal moderno é intensa.
Nesse diapasão surgem as medidas chamadas reparatórias, que têm exatamente o objetivo de atender à satisfação das vítimas[15].
No Direito Comparado essa realidade já está presente, por exemplo, no Código Penal Alemão, reformado em 1994 = atenuação quando há conciliação com a vítima, ou ainda quando realiza esforços reconhecidos no sentido de que isso ocorra ou, também, quando realiza a indenização; no Código Penal Português = circunstância a ser considerada na fixação da pena a conduta realizada para reparar as conseqüências do delito, atenuantes de arrependimento sincero e a reparação possível; no Código Penal Argentino = reparação como condição para a suspensão do processo; e no Código Penal Espanhol = reparação do dano como atenuante genérica, como atenuante específica, ou qualificada, eximente nos crimes contra a fazenda pública e a segurança social, sendo também condição para suspensão da pena[16].
Uma das críticas que se têm feito às medidas reparatórias dizem respeito ao fato de que com elas poder-se-ia estar rompendo as fronteiras entre o direito penal e o direito civil, entre o interesse público e o interesse privado. Não obstante Carnelutti[17] afirma que quando o direito penal trata da reparação do dano, da indenização em sentido civil, não está dando um passo a frente, mas um passo atrás,porque enfoca a questão na ótica do interesse das partes, e não do Estado. E nem estas fronteiras entre interesse privado e interesse público são tão rígidas em matéria penal, eis que, alguns institutos, já aceitos entre nós, são reveladores de que essa distinção não é, nem deve ser, tão rígida. Por exemplo, a ação penal privada e a ação penal dependente de representação; o perdão, a exigência de reparação do dano para obtenção de benefícios penais, e o próprio efeito civil da sentença penal condenatória
Roxin[18], por exemplo, considera que a satisfação da vítima não confronta com as finalidades preventivas da pena. Ao contrário, com essa satisfação há o fortalecimento da consciência jurídica na prevenção integradora.
No Brasil, algumas alterações legislativas produzidas a partir da década de 90 revelam a influência do movimento vitimológico.
Nesse sentido, o artigo 245 da CF.: A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimizadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do delito, é significativo. Esse artigo, embora ao que se saiba não cumprido, revela a influência do movimento vitimológico.
Também se percebe a influência da vitimologia no artigo 5o, inciso XLIII , na Lei dos Crimes Hediondos e na Lei 9426/96 que acrescentou um parágrafo no artigo 157 do CPB.
Contudo, e numa vertente contrária - que deu causa a certas perplexidades pelos novos rumos político-criminais,- a das legislações acima citadas, a Lei 9099/95 impulsiona, a satisfação da vítima no direito penal brasileiro.
Muito embora o atropelo, causado pela ausência de debate prévio ao surgimento da Lei 9099, a fórmula conciliadora, por ela proposta, marca aspecto garantista do direito penal e processual penal, agora não só quanto ao agente do crime, mas também em relação a quem sofre a ação criminosa.
Contudo, embora a década de 90 tenha alavancado a questão vitimológica no Direito Penal, historicamente a vítima sempre foi levada em conta, ainda que timidamente, pelo direito penal brasileiro[19].
NO CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO: Havia um capítulo que referia "DA SATISFAÇÃO". Dispunha sobre a obrigação de reparação da dano;
NO CÓDIGO DE 1890: a obrigatoriedade da reparação do dano era efeito da sentença condenatória, e nos definidos crimes de violação dos direitos da propriedade literária e artística, a sanção correspondente era de multa, em benefício do autor ( da vítima da violação).
A CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS PENAIS DE 1932: nas circunstâncias atenuantes e agravantes, a vítima era levada em conta, e exigia reparação do dano para concessão da suspensão condicional da pena ou livramento condicional.
O CÓDIGO DE 1940: manteve a referências às vítimas ao tratar da circunstância atenuante e agravante, bem como a necessidade de reparação da dano para concessão de favores legais.
A REFORMA PENAL DE 1984 trouxe outras inovações importantes em relação à vítima, especialmente ao referi-la nas circunstâncias judiciais do artigo 59, para efeito de fixação da pena. Além disso, a reparação do dano é condição para o SURSIS e o livramento condicional, e condição para a reabilitação.
No próprio artigo 16 - arrependimento posterior a reparação do dano é considerada.
Na legislação penal extravagante merecem destaque, além da Lei 9099/95, a Lei 9249/95, a Lei 9.503/97, a Lei 9605/98, e a Lei 9714/98[20].
LEI 9099/95 - Institui a conciliação, o instituto da transação penal, e a reparação civil dos danos, além da suspensão condicional do processo;
LEI 9249/95 – Criando causa extintiva da punibilidade para determinados delitos, por ocasião da reparação do dano antes do recebimento da denúncia;
LEI 9503/97 - Código Nacional de Trânsito, que institui a multa reparatória, aproveitada pela vítima ou por seus sucessores;
LEI 9605/98 e a LEI 9714/98 que instituíram a pena pecuniária, espécie de pena restritiva de direitos em benefício da vítima, ou seja, pagamento em dinheiro à vítima ou a seus dependentes, ou a entidade pública ou privada.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Parece induvidável o fato de que uma avaliação mais profunda, e mais coerente acerca do espaço que pode e deve ocupar a vítima é necessária dentro do direito penal. Porque esse fenômeno social que é o crime não pode ser compreendido apenas sob um enfoque. É preciso conhecer as instâncias formais do controle social, é preciso identificar o criminoso, mas também é preciso conhecer e reconhecer a vítima do delito. Nesse aspecto, o movimento vitimológico pode contribuir, fortemente, para a compreensão do fenômeno da criminalidade. Um direito penal mais justo, mais humano, verdadeiramente garantista, não pode prescindir das partes envolvidas no conflito penal. Sendo a vítima uma delas, quiça a principal, seus interesses devem sempre, no mais que se puder, ser preservados e atendidos.
Somente através dos procedimentos de conciliação, que propiciam e devolvem à vítima exercer um papel dinâmico na resposta ao crime, participando ativamente no conflito, estaremos caminhando para atingir um direito penal, uma vitimologia e uma vitimodogmáticado de verdadeiro enfoque garantista.
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http://profeanaclaudialucas.blogspot.com/2011/11/ana-claudia-lucas-para-o-blog-6.html
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[1] Ana Sofia S. de Oliveira, A vítima...p.121/130;
[2] Gomes, Luiz Flávio & Garcia Pablos de Molina. Criminologia. Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2002;
[3] Antonio Garcia Pablos de Molina. Manual...p. 95;
[4] Bitencourt, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. Saraiva: São Paulo, 1999;
[5] Jesús Maria Silva Sanchez, La víctimo...p.197;
[6] Winfried Hassemer, Consideraciones...p.248;
[7] Elena Larrauri, Victimología...p.293;
[8] Jesús Maria Silva Sanchez, La víctimo...p.197; Winfried Hassemer, Consideraciones...p.248;
[9] Elena Larrauri, Victimología...p.294;
[10] Elena Larrauri, Victimología...p.295;
[11] Winfried Hassemer, Consideraciones...p.248;
[12] Jesús Maria Silva Sanchez, La victimo...p.107;
[13] Meliá, Manuel Cancio. Conduta de la víctima e imputación objetiva en dere-cho penal. Universidad Autónoma de Madrid, 1997;
[14] Jesús Maria Silva Sanchez, La víctimo...p.194;
[15] Luiz Flávio Gomes & Antonio García Pablos de Molina, Criminologia...p.455;
[16] Ana Sofia S. de Oliveira, A vítima...p.138;
[17] Francesco Carnelutti, El delito...p.83;
[18] Roxin, Claus. La reparació en el sistema de los fines de la pena,1992;
[19] José Henrique Pierangeli (Coordenador), Códigos Penais do Brasil...p170;
[20] Ana Sofia S. de Oliveira, Vítima...p.157;
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