Sem guardas, sem chaves |
O Rio Grande do Sul deve ter até 2014 seu primeiro presídio
sem vigias. Será em Canoas, onde já conta até com terreno escolhido. No lugar
dos guardas, os próprios presos se encarregarão de controlar seus companheiros
de cela e mantê-los dentro da disciplina. E qual a punição para quem
transgride? Simples: é enviado a uma penitenciária comum, com policiais fazendo
a vigilância externa, sem garantia de trabalho ou estudo.
Por mais desconfianças que desperte, a iniciativa cresce
onde foi implantada. É o caso de Minas Gerais, onde foram inauguradas 33
prisões deste tipo, conhecidas como Associação de Proteção e Assistência aos
Condenados (Apac) – o mesmo nome que terão esses presídios no Rio Grande do
Sul. O governo mineiro já projeta outras 69 prisões, tal o impacto positivo
alcançado.
Trabalho obrigatório |
– Na Apac são proibidas drogas, bebida alcoólica e uso de
celulares. O sujeito é também obrigado a trabalhar. É para mudar de vida, mesmo
– resume o advogado Valdeci Ferreira, responsável pela Fraternidade Brasil, ONG
que organiza as Apacs em Minas Gerais.
Parece bom para o preso, mas será bom para a comunidade,
sempre atemorizada com a possibilidade de motins ou fugas de presidiários? Uma
estatística tem ajudado a tranquilizar a população mineira. Conforme estudo
feito pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a reincidência entre os
egressos das unidades Apac girou em torno de 15%.
O juiz gaúcho Sidinei Brzuska, responsável pela fiscalização
dos presídios da Grande Porto Alegre, um dos maiores conhecedores do sistema
penitenciário brasileiro e defensor das Apacs, tem uma hipótese para as fugas
escassas:
– Se o sujeito foge, vai para um presídio comum. E todos
sabemos as condições miseráveis e insalubres que caracterizam as penitenciárias
brasileiras.
Testadas só em cidades pequenas
Existem ainda, segundo os propagadores do modelo, vantagens
financeiras. As dezenas de unidades Apac, que são mantidas por convênio com o
Estado de Minas Gerais, custam aos cofres mineiros um terço do valor que seria
despendido para manutenção do preso no sistema comum. O custo de cada preso
para o Estado corresponde a quatro salários mínimos, enquanto na Apac é de um
salário e meio, estima o advogado Ferreira.
No Legislativo gaúcho, o deputado Jeferson Fernandes (PT),
presidente da Comissão de Direitos Humanos, tem organizado excursões de
autoridades a Minas Gerais, para conhecer a “prisão sem grades”.
– É a ressocialização efetiva, sempre pregada e nunca
exercida no Brasil – pondera o parlamentar.
Uma ressalva é necessária fazer: quase todas foram
implantadas em pequenas cidades, onde não existem grandes facções do crime
organizado. Outra ponderação necessária: em Minas, onde o sistema ganhou
impulso, apenas 2,3 mil presos são contemplados pelo modelo. Isso representa
menos de 5% dos 56 mil apenados daquele Estado. Funcionará em grande escala? A
necessidade de se testar o modelo Apac é um raro consenso. Entre os que se
tornaram defensores da proposta estão, inclusive, adeptos de mais rigor na
aplicação da lei, como promotores e policiais.
Em Canoas, após momentos de estranhamento, o clima é de
expectativa.
– No começo, fiquei bem preocupada. Afinal, se tem duas
coisas que ninguém quer por perto é cemitério e presídio. Mas agora estou
conformada. Essa Apac parece uma boa alternativa para esses sujeitos voltarem a
viver em sociedade – comenta a dona de casa Tânia Cunha, que é líder
comunitária no bairro Guajuviras, onde será instalada a Apac.
Mórmon, Tânia acredita em arrependimento e reconstrução. Ela
diz que frequenta desde 2009 reuniões sobre a construção de presídios, e o
bairro já se conforma com a ideia.
Secretário da Segurança Pública de Canoas, o delegado da
Polícia Civil Guilherme Pacífico é um dos entusistas da ideia. No local já
escolhido estão sendo construídos uma Praça da Juventude (com local para
esporte, lazer e biblioteca), escola e posto de saúde. A cerca de dois
quilômetros dali também já começou a construção de um presídio comum, para 434
apenados.
– Tenho convicção de que a Apac será um sucesso – opina
Pacífico.
Resta saber se a prisão sem grades, confinada a municípios
de pequeno porte, funcionará em uma das maiores cidades do Rio Grande do Sul.
RESSOCIALIZAÇÃO
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APAC
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Veja a diferença entre cárceres com
celas fechadas e vigiados por agentes penitenciários e cadeias administradas
pelos próprios detentos
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- A Apac se destina a presos
condenados, que podem estar cumprindo pena nos três regimes: fechado (atrás
de grades), semiaberto (com trabalho e pernoite em albergue) e aberto (com
trabalho fora). Todos convivem no mesmo prédio, e não há superlotação.
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- Não existem muros externos,
vigilância eletrônica nem guardas. A relação é de confiança entre os
apenados, que temem perder a vaga. Cada preso convence o colega a não fugir.
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- A disciplina é rígida. Os presos
têm atividades das 7h às 21h. Isso inclui arrumar as camas e limpar a cela. É
proibido telefone.
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- São obrigatórios o estudo e o
trabalho. Médicos, psicólogos, assistentes sociais, professores, parte deles
vinculados ao Estado, e outros voluntários trabalham dentro do presídio.
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- Um voluntário, escolhido por um
conselho comunitário, é designado para dirigir o presídio. A prisão conta com
cerca de oito funcionários para serviços administrativos, pagos pelo Estado,
que também banca despesas de água, luz e telefone.
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- Parte dos presos trabalha como
plantonista, ficando com as chaves de salas internas da porta que dá acesso à
rua. Quebras de confiança são punidas com transferências.
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PENITENCIÁRIA COMUM
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- Os que cumprem pena no regime
fechado ficam num prédio, em celas, apartados dos presos de outros regimes,
que ficam em albergues.
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- As celas do regime fechado são
superlotadas. A maior parte dos presos ali colocados, do regime fechado, não
trabalha. A atividade é opcional e também o estudo, a que poucos se dedicam
durante cumprimento da pena.
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- As alas das penitenciárias
tradicionais são comandadas por facções criminosas (as mais comuns no Estado
são os Manos e os Bala na Cara). A rivalidade faz com que muitas vezes elas
digladiem pelo controle de algum setor, ocasionando mortes.
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- Celular, drogas e álcool são
comuns dentro dos presídios, mesmo proibidos. Há casos em que até prostitutas
ingressam na prisão. Presidiários comandam de dentro do presídio, via
telefone, assassinatos, sequestros e assaltos fora da prisão.
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- Os presos não são obrigados a
arrumar ou limpar as celas, com exceção de quando acontecem casos de
rebelião.
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- Existem três níveis de
vigilância: a externa (feita por PMs), a interna (feita por agentes
penitenciários) e a eletrônica, com uso de câmeras de vídeo. Muitas prisões
têm ainda detectores de metal e portas de aço bloqueando alas
compartimentadas.
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Um preso, Lacir Ramos, foi responsável por fundar, no Rio
Grande do Sul, um modelo prisional que em tudo se parece com o implantado pelas
Apac. Não por acaso, ele hoje peregrina pelo Estado defendendo a adoção de um
método semelhante de recuperação dos apenados.
Lacir passou a maior parte de seus 54 anos de vida atrás das
grades. Entre diferentes passagens, foram 29 anos e seis meses trancafiado,
algo difícil de ser encontrado.
– Não que eu fosse santo – admite ele, hoje pastor
evangélico.
Filho de família de agricultores pobres, Lacir cometeu o
primeiro furto ainda adolescente, em Cruz Alta. Foi torturado por policiais e
viu crescer o ódio dentro de si. Em 1978, soldado do Exército, assaltou e
surrou um PM. Foi preso. A primeira temporada de prisão foi de seis anos. Aí, a
cada soltura, assaltava de novo. Dentro da prisão, ficou abrigado na facção
liderada pelo famoso assaltante Dilonei Melara. No curso da vida bandida, Lacir
matou algumas pessoas. Fugiu para São Paulo e Rio, foi recapturado diversas
vezes pela Polícia Civil gaúcha.
Foi numa das temporadas em São Paulo que virou religioso,
graças à mulher, a mesma com quem está casado há quase três décadas. Condenado
a mais de 200 anos de reclusão, cumpriu quase três décadas de cadeia, o máximo
permitido pela legislação brasileira. Passou 18 anos na Penitenciária Estadual
do Jacuí (PEJ) e foi lá que, já religioso, virou pastor evangélico e decidiu
implantar linha dura na ala que comandava.
Convenceu colegas de infortúnio que a reforma começa no
comportamento. Proibiu drogas, bebida e badernas – e foi atendido. A linha
adotada persiste na galeria que comandava.
Libertado, Lacir teve dificuldades para arranjar emprego.
Desmaiou de tanto fazer força no primeiro serviço, de pedreiro. Hoje trabalha
para um deputado e como missionário, fazendo pastoral carcerária e a defesa do
método da Apac, inclusive guiando visitantes do projeto em Minas. No Presídio
Central, na manhã de sexta-feira, foi saudado pelos presos desde as janelas.
– A Apac é a humanização. A prova de que reformar o ser
humano é possível – conclui o pastor Lacir.
Fonte: Zero Hora
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