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quarta-feira, outubro 30

A garantia da ordem pública e a decretação da prisão preventiva


A decretação da prisão cautelar, com exceção da prisão em flagrante, deve se sujeitar à prévia e estrita observância dos requisitos legais, além da excepcionalidade, por tratar-se de medida de cerceamento da liberdade do indivíduo antes de se ter um posicionamento definitivo a respeito de seu status jurídico no processo, especialmente diante da possibilidade de se adotar uma das medidas cautelares diversas da prisão, previstas no art. 319 do Código de Processo Penal.

Eventual decisão sem o devido amparo legal pode não só invalidar a medida constritiva, mas também afigurar-se como verdadeira antecipação da pena, o que é inadmissível. Antes que possamos tratar propriamente da prisão preventiva – objeto deste breve estudo – convém traçar algumas premissas a respeito da natureza da prisão decretada no curso do processo.

O entendimento moderno a respeito do tema aponta a prisão processual como verdadeira medida cautelar, tendo em vista a nova Ordem Constitucional estabelecida a partir de 1988. De fato, com a edição da Constituição da República, passou-se a privilegiar a liberdade da pessoa, sendo a prisão providência excepcional, sujeita à verificação de sua absoluta necessidade. Tal interpretação decorre, basicamente, de dois dispositivos elencados entre os direitos e garantias fundamentais (art. 5º): “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (inciso LVII) e “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança” (inciso LXVI).

Como medida cautelar, impõe-se, para a decretação da prisão processual, a verificação de dois requisitos: o fumus boni iuris e o periculum in mora, traduzidos, no caso da prisão, em fumus comissi delicti e periculum libertatis. Via de regra, o primeiro requisito encontra-se presente quando há indícios de autoria de determinada infração e prova de sua materialidade. Já o “perigo na demora”, nos dizeres de Antonio Scarance Fernandes[1], é “o perigo, o risco de que, com a demora no julgamento, possa o acusado, solto, impedir a correta solução da causa ou a aplicação da sanção punitiva”. Assim, o que deve pautar a adoção da prisão cautelar é a indispensabilidade da medida, evitando-se, desta forma, intolerável antecipação da pena.

No que toca à prisão preventiva, um de seus motivos autorizadores previstos pelo art. 312 do Código de Processo Penal particularmente suscita dúvidas quanto à sua aplicação. Trata-se daquele estampado na parte inicial do dispositivo, ou seja, o que permite a decretação da prisão como garantia da ordem pública. A dificuldade de interpretação decorre da subjetividade da expressão, uma vez que não há qualquer parâmetro legal para defini-la.

Importante destacar, num primeiro momento, que tal requisito diz respeito a elementos extrínsecos ao processo, ou seja, não busca o motivo autorizador garantir diretamente o bom andamento da ação em curso. Concordamos neste ponto com a lição de Weber Martins, citado por Afrânio Silva Jardim[2]: “a decretação da medida como garantia da ordem pública não tem relação direta com o processo. Em vez disso, está voltada para a proteção de interesses estranhos a ele, tem nítidos traços de medida de segurança”. 

Dessa forma, a medida cautelar tendo como base o fundamento em foco busca proteger a sociedade, a estabilidade de ordem social.

Mas, enfim, quais elementos demonstram que é necessária a prisão para a garantia da ordem pública? Concordamos com o entendimento de que o fator que deve autorizar o decreto é a periculosidade do agente, demonstrada por fatores concretos.

 Assim, o acusado do cometimento de um crime que seja reincidente, dedicado a reiteradas práticas delitivas, via de regra, indica forte probabilidade de continuar a delinqüir, se solto, pondo em risco a ordem social. 

O fumus comissi delicti, somado ao seu histórico criminoso, são motivos suficientes para a adoção da medida. Em suma, a norma busca proteger a sociedade da prática de novos crimes por determinado agente, havendo fundadas razões para se acreditar nisso.

Têm sido frequentes, contudo, posicionamentos doutrinários e decisões judiciais no sentido de se admitir a gravidade da infração, o clamor público provocado pelo crime ou até mesmo a necessidade de conferir “credibilidade” ao Poder Judiciário como elementos de suporte para a decretação da prisão preventiva, tendo em vista garantir a ordem pública. Não concordamos com esses fundamentos.

Quanto à gravidade da infração, temos que todo crime abala a estabilidade social, uns em maior, outros em menor grau. 

A reprovabilidade à conduta mais gravosa já faz parte do preceito secundário da norma incriminadora, isto é, vem expressa no montante da pena em abstrato. Além disso, na hipótese de condenação, pode o Magistrado, no caso concreto, valorar as circunstâncias presentes no art. 59 do Código Penal, impondo pena mais severa ao acusado. Nenhuma referência às circunstâncias do crime existe na lei processual que disciplina a prisão preventiva.

Por seu turno, o clamor público gerado pela prática de determinado crime, muitas vezes fomentado por setores sensacionalistas da mídia, também não é suficiente para sustentar o decreto da prisão preventiva. Não se pode negar que um delito grave causa repercussão social, mormente no local onde foi perpetrado, porém, decretar a custódia cautelar por tal motivo, sem que se tenha um provimento jurisdicional definitivo é no mínimo temeroso, diante da manifesta afronta ao princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF).

No que tange ao decreto da prisão para “credibilidade” do Poder Judiciário, sabemos que não é com tal medida que os órgãos jurisdicionais gozarão de maior respeito perante a sociedade. De fato, a efetiva punição após o devido processo legal é que deve trazer referida credibilidade. A tão divulgada “sensação de impunidade” é resultado de investigações muitas vezes mal feitas, de processos morosos, intermináveis, e de leis processuais em boa parte obsoletas, não de eventual manutenção da liberdade do acusado.

Os Tribunais Superiores têm reiterado decisões no sentido do aqui exposto, exigindo motivação idônea e lastreada em elementos concretos demonstrativos da necessidade da segregação provisória para acautelar a sociedade, como se verifica na ementa do julgamento do Habeas Corpus nº 91616/RS, relatado pelo culto Ministro Carlos Britto, do Supremo Tribunal Federal: “A convivência das figuras da prisão cautelar e da presunção da não-culpabilidade pressupõe que o decreto de prisão esteja embasado em fatos que denotem a necessidade do cerceio à liberdade de locomoção (...) É ilegal a prisão preventiva para a garantia da ordem pública, baseada tão-somente na gravidade do fato, na hediondez do delito ou no clamor público. 

Precedentes“. Na mesma esteira da citada decisão, os seguintes julgados do STF: HC 87343, HC 89238, HC 90064, HC 91729, HC 92133, HC 92737, HC 93114. No mesmo sentido a Jurisprudência do STJ: HC 64234, HC 92704, HC 96091, HC 99859, HC 99889, HC 100397.

Não obstante a posição firme das mais altas Cortes do País, a matéria ainda gera acaloradas discussões, fomentadas pelo grande dilema em que se traduz o processo penal: a busca do equilíbrio entre o interesse público na repressão ao delito e a preservação das garantias individuais do acusado.

[1] Processo penal constitucional. 5. ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 328


Fonte: Site JusBrasil

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