Por Léo Rosa de Andrade(*)
Talvez em certos campos da vida fosse desejável algum
padrão; nem tudo é padronizável, contudo. Exegeses distintas de fatos análogos
não são idênticas, ainda que oriundas de um único intérprete. Duas pessoas não
pensam necessariamente do mesmo modo sobre um acontecimento, e uma mesma
pessoa, se um acontecimento se repetir, pode compreendê-lo de maneira diversa
do entendimento anterior.
Esse tema nem seria considerado socialmente relevante não
fossem as discrepâncias entre a polícia e a Justiça. Para o credo popular, está
estabelecido: a polícia prende, a Justiça solta.
Sobre o assunto, há farto material disponível na internet,
não só opinativo ou acadêmico, mas “empírico”, com a filmagem de reincidentes e
a tomada dos devidos depoimentos de indignados policiais.
Os números atinentes estarrecem: “Três menores são
responsáveis por 69 infrações à lei em Brasília. Cada um deles reincidiu mais
de 20 vezes. São apreendidos, liberados e voltam ao crime. Outros quatro
menores infringiram a lei 70 vezes, tendo reincidido entre 15 e 19 vezes. Os
menores que reincidiram no crime são 3.968, responsáveis por 12.112 atos
infracionais” (Hélio Doyle, Jornal de Brasília, 30/9/2016).
“Enxugar gelo é uma expressão comum entre os policiais
quando se referem a prisões e solturas de criminosos. Com isso, revelam
frustração frente a uma situação que também incomoda a sociedade – ver bandido
no mesmo convívio social e reincidindo no crime” (Ângela Bastos e Gabriela
Rovai, Jornal de Santa Catarina, 20/10/2012).
A Justiça diz que “cumpre a lei”. Essa elucidação não aplaca
a opinião pública e autoriza políticos populistas e programas televisivos
popularescos a pedir por punitivismo penal. Ademais do cultivo de leis
draconianas, “no Brasil, 40% dos presos são provisórios [...] Em 37,2% dos
casos em que há aplicação de prisão provisória, os réus não são condenados à
prisão ao final do processo ou recebem penas menores que seu período de
encarceramento inicial” (Carta Capital, 2/2/2015).
Os dados não deixam dúvidas de que a Justiça prende menos do
que a polícia, o MP e a sociedade gostariam, embora a Justiça prenda mais do
que a lei permite. Praticamos excessiva e indevidamente prisões sem julgamento
e condenação.
Quando se escutam juízes e promotores se pronunciando sobre
morosidade judicial, sobretudo quando se trata de prender ou soltar demasiada e
incorretamente, surge o argumento de que temos excessos de leis, de processos,
de recursos. Em parte é verdade. No que há de erros, contudo, reparos têm
acontecido.
Eu gostaria de acrescentar outra natureza de um grave
problema brasileiro: o excesso de margem interpretativa que é dado ao
magistrado, gerando situações que alcançariam comicidade, não fossem trágicas à
ideia geral de Justiça.
“Pontos de vistas explicam o prende e solta: durante
audiência de custódia, a juíza Erica afirma que a prova do envolvimento dos
suspeitos é muito fraca para manter a prisão. Já a magistrada Alexandra entende
o oposto, que a acusação por um crime grave, independente dos indícios mínimos,
é o suficiente para manter a prisão. A juíza Erica entendeu que o relato dos
policiais não encontra consonância com o caso concreto. Já Alexandra entende
que a palavra do policial tem força por si só, por ser agente público” (Victor
Pereira e Diogo Vargas, Diário Catarinense, 8/4/2017).
Pode parecer que padronizar entendimentos levaria ao
cerceamento da liberdade interpretativa. Não é verdade. Os tribunais superiores
poderiam decidir de modo vinculativo a respeito de muita coisa, sem incidir no
foro íntimo do magistrado de primeiro grau. Calha para exemplificar o caso da
diatribe hermenêutica ocorrida entre as juízas citadas: o ponto médio da
questão entre elas está em reconhecer ou não validade suficiente de prova à
palavra dos policiais que prenderam os réus.
O testemunho do policial que efetuou um flagrante é
suficiente para embasar a condenação de um acusado? Se está aceita a
honestidade como apanágio da nossa polícia, resolvido a favor. Se temos motivo para suspeitar que nem sempre
a narrativa dos policiais coincide com os fatos, é impensável acolher, regra
geral, a palavra do policial como prova única a fundamentar a prisão de alguém.
Ademais disso, está em pauta a gravidade do fato (juízo
subjetivíssimo) como justificadora da conversão da prisão em flagrante em
preventiva. O STJ e o próprio STF entenderam recentemente que a gravidade do
fato não é suficiente para manter a prisão. Entretanto, juízes mandam prender
lastreados nesse argumento.
Ora, essa incerteza jurídica bagunça a credibilidade
necessária da Justiça. O STF que produza súmula vinculante. Impensável que a
convicção pessoal do juiz dê azo a tanto subjetivismo, como se fosse
impraticável um mínimo de encaminhamento ordenador a questões repetidas e
perfeitamente generalizáveis que estão postas como firulas nos abarrotados
escaninhos do Judiciário.
(*) Doutor em Direito pela Universidade Fedeal de Santa Catarina e professor da Unisul (SC)
Fonte: Conjur
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