O universo de Bruna
Por Fernanda Zanuzzi,
Após 533 dias presa em Barcelona, na Espanha, a
nutricionista gaúcha Bruna Bayer Frasson, 26 anos, finalmente começa a ser
julgada nesta segunda-feira por “atentado contra a saúde pública”. Bruna foi
detida em 23 de março de 2012, ao ser flagrada com três quilos de cocaína no
porto da capital catalã, onde desembarcava para desfrutar de um dia de folga
como trabalhadora do navio Costa Victoria, da armada italiana Costa Crociere.
Segundo a declaração judicial do seu ex-namorado, também
tripulante do barco e preso no mesmo momento, a droga foi introduzida por ele
na sua mochila sem que ela soubesse. No momento do julgamento, Bruna terá
cumprido, em prisão preventiva, um quarto da pena sugerida pela promotoria, de
sete anos e nove meses. Esse tempo é suficiente para que condenados pela
Justiça espanhola passem ao regime de prisão aberto.
O julgamento, coletivo, será acompanhado por representantes
da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul,
do Consulado Brasileiro em Barcelona e pelo secretário de Justiça e Direitos
Humanos do Estado, Fabiano Pereira. As autoridades brasileiras apoiaram o pai
de Bruna, o empresário Alexandre Frasson, nas negociações que pleiteavam que
ela esperasse o julgamento em liberdade. Depois de seis reuniões diplomáticas e
diversos recursos jurídicos, o direito foi negado, e, em junho de 2013, o
julgamento de Bruna ainda não tinha data marcada.
Desde então, a família decidiu tornar a causa pública e
reuniu mais de 5 mil assinaturas em uma campanha nas redes sociais e na
comunidade de mobilização online Avaaz para denunciar “a máfia dos cruzeiros, a
violação de direitos humanos nos navios e para defender os brasileiros
desamparados no exterior”. Segundo o Itamaraty, a Espanha conta com o maior
número de brasileiros presos na Europa: 362. Em todo o mundo, são 3.078 detidos
– a maioria mulheres envolvidas em tráfico de drogas.
A história de Bruna não é única, mas é paradigmática. Nesta
entrevista, realizada no Centro Penitenciário de Mulheres de Barcelona Wad Ras,
em uma pequena sala de vidro situada no saguão que dá acesso aos módulos e ao
pátio, ela explica como enfrenta a situação que mudou a sua vida. Um pouco
ressabiada, mas sorridente e com olhar tranquilo, Bruna quis saber mais sobre a
entrevista, e se eu já conheci o seu pai, que está em Barcelona. Antes da
primeira pergunta, ela começa a relatar:
– Essas coisas que a gente vê na TV e pensa: “Que duro, né?
Como deve ser? E aconteceu isso com alguém? E se acontecesse comigo? Mas agora
está acontecendo e estou sobrevivendo. A gente sobrevive a tudo. Aqui dizem que
o ser humano é um animal de costumes. Se acostuma a tudo.
Quando fiz a
faculdade, meu professor de fisiologia sempre dizia que o corpo se acostuma a
tudo, menos à dor. Mas as pessoas também se acostumam à dor. Se acostumam a
sentir dor e vão se tornando mais duras. Espero sair logo daqui, mas acho que
esses quase dois anos me fizeram crescer muito, melhorar como pessoa. O meu
tutor diz que eu criei um universo paralelo, e que não tenho noção de que estou
presa. E é verdade, eu acho que, como ser humano, eu vou conseguir sair melhor.
Isso é incrível, mas eu acho que consegui encontrar aqui um equilíbrio.
Entrevista: 533 DIAS DE ESPERA
“Se eu venci aqui,
onde não vou conseguir?”
Apesar das queixas contra as autoridades judiciárias
espanholas, Bruna aproveitou a rotina da instituição penal para ser útil e
descobrir o talento para as artes. Veja trechos da entrevista:
Zero Hora – Como é a sua rotina em Wad Ras?
Bruna Bayer Frasson – O centro está organizado em cinco
módulos: Ingressos (Entradas), Enfermagem, Polivalente ou Residencial, Mães e
Preventivas. Quando alguém chega passa os três primeiros dias em Ingressos, se
habituando a horários: pela manhã, contam quantas pessoas há dentro do quarto,
e daí a porta já fica aberta para fazer as atividades previstas. Às 7h30min
abrem a porta. De Ingressos passei para Preventivas, onde fiquei só o primeiro
mês. Em dois anos, quase dois anos, minha rotina mudou bastante. Eu tinha muito
medo de todo mundo, eu nem olhava para as pessoas. Eu só lia. No primeiro mês,
li trinta livros. Não falava com ninguém. Não conseguia dormir, pensando, então
eu preferia ler a ficar chorando ou pensando. Era obrigada a descer para o
pátio, e eu sempre estava lendo. Passava muito tempo na biblioteca. Conheci o
bibliotecário, Luis, e comecei a trabalhar na biblioteca, pela tarde. No
primeiro mês, já estava trabalhando – para te dar um trabalho aqui, demoram
normalmente uns seis meses. Também comecei a fazer um curso no salão de beleza.
Aprendi a cortar e a fazer chapinha. E logo me subiram para o Residencial, onde
estão as pessoas com bom comportamento.
ZH – E atualmente você é uma das responsáveis pela cozinha.
Bruna – Dou entrada em todas as notas fiscais, organizo o
que entra e o que vai sair. Desde o custo, que não pode passar de 3,90 euros
por pessoa para as três refeições, por dia. E eu tenho que manter esse custo,
organizar o menu (...) Aqui, juntam-se todas as nacionalidades possíveis e
imagináveis: as africanas que só querem comer a sua comida, por exemplo. O
orçamento é muito pequeno, as nacionalidades são muitas. Escuto reclamação
desde a hora em que acordo.
ZH – Que outras atividades você faz?
Bruna – Passo todas as manhãs na oficina de artes plásticas.
Agora, a gente está em período de férias escolares. Antes, eu estava fazendo
uma pós-graduação por internet, pela Universidade de Barcelona, em Nutrição
Comunitária. É uma pós-graduação à distância, de um ano. Como agora não tenho
internet, porque a sala está fechada, acabo passando toda a manhã no ateliê de
artes plásticas. Mas eu dividia minha manhã entre a pós e a pintura, e pela
tarde trabalho na cozinha e informática, onde eu podia escrever cartas para me
comunicar com a família e escutar alguma música nossa, MPB que eu adoro. Eu
nunca vou ao pátio. É o lugar onde eu mais me sinto no cárcere. Esse lugar me
faz muito mal, eu nunca vou ao pátio. E nunca estou no quarto. Só para dormir.
ZH – Você divide o quarto com quantas pessoas?
Bruna – Somos seis, em um espaço muito pequeno. A gente
mediu outro dia, tem mais ou menos 3 metros por 1,5 metro. Eu sou uma das
poucas que já estão aqui há dois anos, e sou a única que tem uma cama há um ano
e meio. Tem uma brasileira no meu quarto, e também uma senhora colombiana, de
uns 60 anos ou mais. Como já estou aqui há tanto tempo, as pessoas associam
como minha casa. O espaço é um problema muito forte. Mas eu não tenho problema
de convivência, não tenho manias. (...) E no residencial temos muito mais
liberdade que as outras internas. Parece um colégio interno, não uma prisão. Eu
acho que eu entrei nesse universo paralelo por isso.
ZH – Como é a sua relação com as outras internas?
Bruna – Comecei a estudar muito sobre prisões e cheguei à
conclusão de que nenhuma reabilita ninguém. Uma pessoa que não tem uma base
familiar boa, que está envolvida em alguma drogadição, é muito difícil que
saia. Sai e volta. Mas tem muita gente que, antes de entrar aqui, não tem noção
do que é isso. A maioria das pessoas com quem eu convivo está acusada de delito
contra a saúde pública, que é tráfico. A maioria é mula. Essas pessoas não têm
noção de que é um crime. A maioria das brasileiras, por exemplo, estava em um
momento em que precisava muito de dinheiro: um filho estava doente, perdeu o
trabalho, e pensou, vou fazer isso pra sair dessa merda. O tráfico é um
dinheiro muito fácil. É um ciclo vicioso. Tem muita diferença entre quem tem
uma família por trás e quem não tem. Tenho claro que não posso sair daqui e
manter contato com alguém que trabalha com isso. Tem gente por quem eu tenho
muito carinho, mas eu não quero estar aqui de novo.
ZH – O seu trabalho artístico, desenvolvido aqui dentro, foi
premiado em duas ocasiões, e você inaugura uma exposição individual em uma
galeria no centro de Barcelona. Como você define seu trabalho?
Bruna – Quando eu estava nessa fase da adolescência,
tentando escolher universidade, o pai me deu muito apoio para fazer Artes
Plásticas. Mas eu tinha tanto medo! O artista no Brasil – no mundo inteiro – é
tão desvalorizado. Pensei, não posso fazer uma universidade e correr o risco de
depender da minha família. Eu sempre gostei da área da saúde, também, e acabei
fazendo Nutrição. Aqui, entrei no ateliê de pintura porque eu precisava de um
espaço para estudar. O monitor de artes me ofereceu a sala, porque normalmente
as pessoas estão pintando em silêncio. Hoje eu estudo na sala de estudos de
Ensino Médio. Mas, quando vi, eu já estava em pintura. Dividi a manhã entre a
pintura e estudar. Aprendi a fazer retratos e óleo. Meu primeiro quadro a óleo acabou ganhando um
concurso.
ZH – Você escolheu algum tema para a exposição?
Bruna – Decidimos apresentar um pouco de tudo. A exposição
foi uma proposta da monitora de fotografia, a Francesca Nocivelli, e do monitor
de artes plásticas do centro, o Abel. Ela se interessou por mim, se informou
sobre o meu caso, ofereceu ajuda. (...) Eu pinto muito mulheres, eu adoro
mulheres: o rosto, fotografia, eu faço muito esse trabalho de retrato. E me
perguntam por que elas são tristes. Eu tenho dois sorrisos em dois anos
trabalhando! Eu não sei se eu sou isso ou se é porque eu estou aqui.
Pintar me ajudou a sofrer menos”
ZH – A pintura também tem um lado terapêutico pra você?
Bruna – Muito! Com tudo isso que me aconteceu, eu nunca tive
pesadelos, sempre dormi bem. (...) Acho que pintar me ajudou a sofrer muito
menos. Tenho muito medo de ficar com um trauma. (...) Uma coisa que me
aterroriza aqui é o barulho das chaves. Quando tu escutas o barulho de chaves,
sabes que está vindo um funcionário. Pela manhã, eles abrem a porta para fazer
a contagem, e eu acordo com o barulho de chaves, eu vou dormir com o barulho de
chaves, e sei que alguém está chegando, e tenho que cuidar o que estou fazendo
ou falando, para não ser mal interpretada e punida.
ZH – Você tem planos para seguir com a arte?
Bruna – Não sei o que vai ser do meu futuro, é muito difícil
planejar um futuro. Tem que planejar umas cinco opções, porque tu não sabe o
que vai acontecer.
ZH – O que mais te ajudou a adquirir autoconfiança?
Bruna – Tudo me ajudou, a situação em si. Eu sempre fui boa
aluna, tenho um jeito carinhoso, e às vezes eu não sabia se eu conseguia as
coisas pelo meu jeito, porque as pessoas iam com a minha cara. Eu sempre tive
essa insegurança: o quanto era meu e o quanto eu fiz por merecer. Mas se eu
conseguir vencer aqui, onde eu não vou conseguir? É um lugar bastante duro. E,
às vezes, eu penso: Bruna, que feio, vencer aqui! Claro que tu vais vencer
aqui! És uma das poucas pessoas que tem uma base familiar, estudo. Mas eu
consegui por mérito: eu tenho um trabalho de confiança, sou muito respeitada
pelas pessoas.Não tento provar a minha inocência pra ninguém, porque isso a
gente vai ver no julgamento. No começo, eu chorava e dizia que eu não fiz isso,
que eu tenho que sair daqui. Demorei uma semana para tirar minhas roupas da
sacola que me deram, porque todo dia eu esperava que alguém me chamaria, me
tiraria daqui. Depois de uma semana, eu tirei as coisas da sacola e pensei: em
um mês eu vou embora. E cada vez eu fui aumentando esse tempo. Depois de um
mês, seis meses. Em seis meses vou aprender tudo o que tenho que aprender,
aproveitar tudo de positivo, e depois vou embora. Depois de seis meses, um ano.
Quando fez um ano, eu disse: cinco, vou colocar o período de cinco anos. Meu
tutor me perguntava como eu conseguia estar sempre tão bem, e eu dizia: é um
dia a menos de cinco anos. Isso tudo me deu confiança. Eu ganhei a confiança
dos funcionários também, porque a maioria pensa que eu sou uma delinquente,
como todas as pessoas que estão aqui. Mas por algum motivo, confiam em mim.
Acho que é uma vitória ganhar a confiança de alguém.
ZH – Em junho deste ano, você e sua família decidiram tornar
o seu caso público. Por que essa decisão?
Bruna– Eu criei um universo paralelo, e sou consciente
disso. Eu confio muito no meu pai e na mãe. O pai sempre foi muito guerreiro, e
desde que entrei aqui ele buscou gente que pudesse me ajudar. E sempre houve
essa alternativa. Mas ele nunca quis fazer público. O dia em que ele me
perguntou se eu queria, eu disse que ele era quem podia avaliar melhor. (...)
Claro que eu tinha medo, eu tenho muito medo de chegar no Brasil e encontrar
com um monte de gente. Eu não tenho vontade de falar sobre isso com ninguém, eu
não tenho vontade de dar explicação, eu tenho medo de ser olhada na rua. Eu
pensava: não quero ser apontada, que falem de mim. Eu preciso conseguir um
trabalho, e tenho que sentar e estar no mesmo nível que as outras pessoas que
estão tentando conseguir esse trabalho. Se a pessoa que está me entrevistando
sabe que fui presa, até que ponto ela vai avaliar isso ou não, negativamente?
Mas, eu disse pra ele, eu confio plenamente em ti. Depois, pensando com mais
calma, dá na mesma (...) As pessoas gostam de notícia, gostam de fofoca, e
depois esquecem.
ZH– Essa publicidade conseguiu trazer para o seu julgamento
uma comitiva e está tornando público um tema muito mais amplo, a exploração do
trabalho e os crimes cometidos em navios de luxo. Como você vê isso?
Bruna – O barco é pior do que estar aqui. Trabalhava 15
horas, dormia quatro horas, quando dormia muito, e não são nem quatro horas
seguidas, porque o teu turno de trabalho às vezes é de sete horas de trabalho,
uma hora de descanso, oito horas, uma hora de descanso. Nem as tuas quatro
horas de sono são seguidas. Quando eu começo a contar, penso: por que eu passei
por isso? Por que alguém passa por isso? Não sei. (...) Nos navios, muita gente
usa uma droga chamada cristal, que permite ficar acordado durante três dias
seguidos, e muito ativo, que é o que tem que ser para um navio.
ZH –A sua intenção é seguir denunciando essa situação?
Bruna– Eu, agora, tento não ter muito acesso sobre o que
está saindo. Espero que ajude a muita gente, o que aconteceu comigo. É uma
denúncia que devia ter sido feita antes. Acontece muita coisa feia aí, as
pessoas vivem com medo dentro de um barco. Mulheres são estupradas, apanham.
São muitas nacionalidades, e algumas culturas ainda mais machistas do que a
nossa. A menina não denuncia porque tem medo de sofrer alguma punição,
represália.
ZH – A sua defesa tentou conseguir que você esperasse o
julgamento em liberdade, havia uma família que te receberia e diversas
garantias legais. Mas esse direito foi negado pela justiça espanhola. Por quê?
Bruna – Meu pai demonstrou que poderia me ajudar
economicamente. A família daqui me oferecia trabalho. A justificativa do juiz
foi que eu cheguei do Brasil para embarcar em um navio na Grécia, falo inglês,
e demonstro uma grande capacidade de locomoção internacional. O que significa
que eu fugiria facilmente do país!
ZH – O seu julgamento começa no dia 9. Como se sente?
Bruna – Uma coisa que eu aprendi aqui é que tudo chega. A
hora de sofrer vai chegar. Eu posso ser condenada, e nessa hora eu vou chorar o
que eu estiver sofrendo. Uma coisa que eu tenho de casa é que a gente brindava
sempre por uma coisa boa que aconteceu durante o dia. O dia tem 24 horas e
sempre acontece alguma coisa boa. Meu pai sempre lembra o ditado “fazer do
limão uma limonada”. A gente tem que tomar limonada! E é isso: o julgamento,
segunda-feira começa. E se for mal, eu começo a chorar na segunda-feira. Minha
debilidade é minha família. Enquanto eles estiverem bem, eu estou bem. Agora,
ver o pai mal? Eu acho que ter meu pai no julgamento vai ser difícil. Não
queria que ele passasse por isso. (...) Eu penso fazer universidade aqui, se eu
tiver que ficar. Eu não tenho trauma com a Espanha. (...) Não quero essa seja a
minha última experiência na Espanha. Quem sabe com esse trabalho da exposição?
Talvez no Rio Grande do Sul eu seja nutricionista, e na Espanha, uma artista.
Um comentário:
Lendo esta postagem (fui atras de + detalhes, entao acabei "parando aqui"), sobre a situacao dessa brasileira, tenho a nitida impressao (e foi por isso que busquei + noticias) que realmente sao poucos os que cometem um ERRO e aprendem e MUITO com isso, transformando num "outro" caminho para se superarem e evoluirem com sua escolha errada!
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