O juiz não pode modificar a definição jurídica dos fatos
narrados na denúncia, no momento em que a recebe. Com base nesse entendimento,
a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheu recurso em habeas
corpus para anular decisão que modificou a capitulação jurídica dada aos fatos
pelo Ministério Público e reconheceu a extinção da punibilidade em relação a um
empresário de Goiás, pela prescrição da pretensão punitiva estatal.
O empresário foi denunciado pela suposta prática de crime
contra a ordem tributária. Ele teria deixado de realizar lucro inflacionário
diferido relativo ao Imposto de Renda pessoa jurídica, no ano-calendário de
1998, totalizando o débito de R$ 3.850.060,09. Em seguida, encerrou as
atividades da empresa sem comunicar o fato à Secretaria da Receita Federal.
Na denúncia apresentada à Justiça, o Ministério Público
afirmou que o empresário teria cometido o crime descrito no artigo 2º, inciso
I, da Lei 8.137/90: dar declaração falsa ou omitir informações com o objetivo
de evitar o pagamento de tributos. A pena prevista é de seis meses a dois anos
e o prazo de prescrição, que varia em função da pena máxima, fica em quatro
anos. Nessa hipótese, o crime já estaria prescrito no ato da denúncia.
No entanto, ao receber a denúncia, o juízo de primeiro grau
não vislumbrou a ocorrência da prescrição, pois considerou que a conduta
narrada se amoldava ao delito do artigo 1º, inciso I, da mesma Lei 8.137 – que
consiste em, efetivamente, suprimir ou reduzir tributo, mediante declarações falsas
ou omissão de informações às autoridades fiscais. A pena vai de dois a cinco
anos.
“Portanto, no caso dos autos, a prescrição da pretensão
punitiva se dá em 12 anos, nos termos do artigo 109, inciso III, do Código
Penal. Considerando que o fato ocorreu em 1998, ainda não está prescrito”,
assinalou o juiz.
Novo enquadramento
Inconformada, a defesa impetrou habeas corpus no Tribunal
Regional Federal da 1ª Região (TRF1), sustentando que o empresário seria vítima
de constrangimento ilegal. Argumentou que a acusação dizia respeito a ilícito
já prescrito, não podendo o julgador, no ato de recebimento da denúncia, adotar
conclusão diversa da exposta pelo Ministério Público em relação ao
enquadramento jurídico dos fatos narrados na peça inicial.
O TRF1 negou o pedido, entendendo que o magistrado, quando
aprecia a defesa preliminar, está autorizado a conferir classificação jurídica
diversa da contida na denúncia, porque essa avaliação sobre a capitulação dos
fatos apontados é imprescindível ao exame da alegação de prescrição, que se
baseia na pena em abstrato prevista para cada crime.
No STJ, a defesa reiterou seus argumentos, insistindo em que
a fase de recebimento da denúncia não é adequada para a alteração da
classificação jurídica dos fatos, principalmente quando tal modificação é feita
para piorar a situação do réu.
Condições da ação
Em seu voto, o ministro Jorge Mussi, relator do caso,
ressaltou que a ação penal pública é iniciada por denúncia formulada pelo órgão
ministerial, e é a partir do exame dessa peça processual que o magistrado
analisará a presença das condições da ação, a fim de que acolha, ou não, a
inicial acusatória.
“Assim, a verificação da existência de justa causa para a
ação penal, vale dizer, da possibilidade jurídica do pedido, do interesse de
agir e da legitimidade para agir, é feita a partir do que contido na peça
inaugural, que não pode ser corrigida ou modificada pelo magistrado quando do
seu recebimento”, afirmou Mussi.
“Ainda que o acusado se defenda dos fatos narrados na
denúncia, e não da definição jurídica a eles dada pelo Ministério Público, não
se pode admitir que, no ato em que é analisada a própria viabilidade da
persecução criminal, o magistrado se manifeste sobre a adequação típica da
conduta imputada ao réu, o que, evidentemente, configura indevida antecipação
de juízo de valor acerca do mérito da ação penal” acrescentou o ministro.
Inércia da Justiça
Jorge Mussi considerou “prematura e precipitada” a atidude
do juízo, pois, antes mesmo da instrução do processo, concluiu que o empresário
não teria apenas falseado ou omitido informações para se eximir do pagamento de
tributos, mas teria efetivamente reduzido tributos por meio dessas condutas.
Esse comportamento do juízo, segundo Mussi, ao modificar os
parâmetros estabelecidos pelo titular da ação penal a fim de não reconhecer a
prescrição, viola o princípio da inércia do Judiciário – que só atua quando
provocado, “não podendo instaurar ações penais de ofício”.
O relator observou que há, na doutrina e na jurisprudência,
o entendimento de que em algumas situações o juiz pode corrigir o enquadramento
contido na denúncia logo que a recebe, mas apenas quando é para beneficiar o
réu ou permitir a correta fixação da competência ou do procedimento a ser
adotado na ação.
Segundo o ministro, mesmo havendo erro na tipificação dos
fatos descritos pelo Ministério Público, ou dúvida quanto ao exato
enquadramento jurídico dado a eles, cumpre ao juiz receber a denúncia tal como
proposta, para que, no momento em que for dar a sentença, proceda às correções
necessárias.
Considerando a sanção máxima do delito atribuído pelo
Ministério Público ao empresário e tendo em conta que os fatos teriam ocorrido
em 1999, o ministro concluiu que a prescrição da pretensão punitiva estatal já
se teria consumado quando a denúncia foi recebida, em 2008, mais de quatro anos
depois.
O recurso em habeas corpus foi provido por decisão unânime
da Quinta Turma.
Fonte: Site do STJ
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