Para quem está interessado no estudo acerca do
encarceramento feminino, sugiro que façam a leitura do
‘Levantamento Nacional DE INFORMAÇÕES
PENITENCIÁRIAS INFOPEN-
AQUI
Mulheres,
disponível
|
Imagem disponível na Web |
Para instigar a continuidade dos estudos, sugiro a leitura
do artigo de
Myrna Alves de Britto,
publicado hoje no Canal Ciências Criminais, sobre o encarceramento feminino
como possível instrumento patriarcal de reafirmação de papeis sociais, abaixo
transcrito.
Encarceramento feminino: instrumento patriarcal de
reafirmação de papéis sociais
Nas décadas 60 e 70, do século XX, surge o marco
epistemológico, intitulado labeling approach, para o qual uma das instâncias a
se analisar a criminalidade é a forma como os órgãos oficiais reagem ao
comportamento delitivo. O crime passa a ser, portanto, “o resultado da construção de um discurso mediante processos de
interação que etiquetam comportamentos e os elegem como desviantes (MENDES, 2017)”.
A criminalidade passa a ser encarada como resultado do
etiquetamento. Se, para Baratta, o etiquetamento não aponta como e por que
determinados grupos são criminalizados, o encontro entre a criminologia e o
feminismo pode nos apontar um norte. Segundo Joan Scott (1990 apud MENDES,
2017), o gênero é o campo primário de articulação do poder, elemento
constitutivo da ideologia homem/mulher, da difusão de suas representações, confere
aos indivíduos identidades subjetivas mediante um ato de sujeição.
O patriarcado, nas palavras de Alda Facio (1999 apud MENDES,
2017), “é um sistema que justifica a
dominação sobre a base de uma suposta inferioridade biológica das mulheres, que
tem origem na família, cujo comando por milênios foi exercido pelo pai, e que
se projeta em toda a ordem social.
Esse poder é sustentado por um conjunto de
instituições da sociedade política e civil que articulados para manter e
reforçar o consenso expressado em uma ordem social, econômica, cultural,
religiosa e política, que determina que as mulheres estejam sempre subordinadas
aos homens, ainda que uma ou várias mulheres tenham algum poder, ou mesmo muito
poder, ou que todas as mulheres exerçam certo tipo de poder”.
Apesar de não ser contribuição do feminismo, mas por ele
atualizado, o conceito de patriarcado reflete esta ideologia onde a mulher, o
feminino, é visto como inferior, subalterno, dependente, subordinado,
contrapondo-se ao homem, masculino, forte, superior, independente. O Direito,
mostrando-se essencialmente masculino, reverbera o machismo crescente na
sociedade.
O Sistema Penal é um sistema legitimador do poder, um
sistema seletivo, o que faz com que determinadas condutas sejam selecionadas
para serem punidas, em detrimento de outras. O Sistema Penal assume, para as
mulheres, seu caráter simbólico, procurando ocupar o papel de educador da
sociedade, reforçando seus papéis.
O patriarcado se mantém e reproduz, em suas distintas
manifestações históricas, através de múltiplas e variadas instituições cuja
prática, relação ou organização, a par de outras instituições, operam como
pilares estreitamente ligados entre si para a transmissão da desigualdade entre
os sexos e a convalidação da discriminação entre as mulheres. Estas
instituições têm em comum o fato de contribuírem para a manutenção do tema de
gênero, e para a reprodução dos mecanismos de dominação masculina que oprimem a
todas as mulheres (MENDES, 2017) .
Para a Criminologia Crítica, o cárcere, da forma como
conhecemos hoje, surge na história como forma de controle social das
aglomerações urbanas ocasionadas pelo excedente de mão-de-obra migrante das
zonas rurais tidos como inadequados ao trabalho; sendo, portanto, uma
instituição auxiliar às fábricas.
Desafia esta definição Soraia da Rosa Mendes (2017), para quem
a definição de cárcere, em se tratando de mulheres, supera o paradigma da
necessidade burguesa de isolamento da mão-de-obra ociosa e pobre; vai além,
perpassando as pobres, mendigas, prostitutas, atingindo ainda àquelas que
carecem de proteção masculina.
Encarceramento feminino
O trabalho objetiva analisar o aumento da população
carcerária feminina entre os anos de 2000 e 2014 e, de maneira subsidiária,
interseccional, verificar se a influência dos índices intrínsecos deste
encarceramento pode afirmar a hipótese do uso do encarceramento como
instrumento de dominação patriarcal.
Os dados obtidos através da divulgação do Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias, com recorte de gênero, voltados à
criminalidade feminina, são os seguintes: 67% são negras, 57% solteiras, 89%
entre 18 e 45 anos (idade fértil), 68 % presas por tráfico (crime socialmente
atribuído aos homens). Apesar de representar 6,4% da população carcerária
nacional, a taxa representa um aumento de 567% entre os anos de 2000 e 2014.
Soraia da Rosa Mendes (2017), ao confrontar o paradigma do
encarceramento, alerta-nos que o objetivo do encarceramento feminino é a sua
custódia. Custodiar as mulheres desprotegidas por um homem, ou mulheres
exercitando papéis socialmente estabelecidos como masculinos e substituindo, portanto, homens (BARATTA,
1999).
Para Soraia da Rosa Mendes (2017): “A ideologia é a de custodiar a mulher. O que interessava tanto ao
homem, enquanto pai ou marido, como também interessava às instâncias
eclesiásticas, políticas e econômicas que desejam seu afastamento da esfera
pública. Eis o porquê da criação de uma política de “correção” da mulher ainda
não experimentada, mesmo que milenar já fosse a submissão feminina entre
gregos, romanos, hebreus e outros povos”.
Que papel mais masculino a criminalidade pode assumir, que o
do traficante? Que imagem mais desafiadora ao papel da mulher, socialmente
construído, que a mulher sem filhos? O salto no índice de encarceramento
feminino justifica a análise detida dos seus dados intrínsecos de forma
interseccional, pois, como afirma Baratta (1999): “o sistema da Justiça Criminal, portanto, a um só tempo, reflete a
realidade social e concorre para sua reprodução”.
Alerta-nos, ainda, que as mulheres que ousam assumir papéis
socialmente atribuídos aos homens, ou substituí-los, são mais severamente
punidas.
Podemos concluir que as instituições de controle formal do
sistema penal voltam sua punição e repressão às mulheres negras (por
representarem, historicamente, arrimos de família e ausência de fragilidade –
ousam ocupar o lugar dos homens), solteiras (não vivem uma família tradicional
ou abandonaram), em idade fértil, porém sem filhos (infringem regras do
dever-ser de seu papel social, do seu gênero, com autodeterminação sobre seu
corpo), que de alguma forma se encontram envolvidas com o tráfico (atividade
socialmente atribuída aos homens).
São essas mulheres, portanto, que ousaram afrontar a
ideologia de seu gênero, que desafiaram o poder patriarcal.
São essas, as bruxas, que a sociedade contemporânea deve
“queimar”.
REFERÊNCIAS
BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão
criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmem Hein de ( Org.).
Criminologia e Feminismo. 1. ed. Porto
Alegre: Sulina, 1999. FACIO, Alda.Feminismo, Género y Patriarcado.In: LORENA,
Fries e FACIO, Alda (eds.). Género y Derecho. Santiago de Chile: LOM Ediciones: La Morada, 1999.
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos
paradigmas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
SCOTT, Joan W. A Mulher Trabalhadora. In: PERROT, Michelle. DUBY,Georges. (orgs.).
História das Mulheres no Ocidente. Vol.4. O Século XIX. Porto: Edições
Afrontamento, 1990.