Como se sabe, o princípio da presunção de inocência é
consagrado não apenas no ordenamento constitucional (artigo 5º, LVII da CF),
mas também convencional (artigo 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos)
e legal (artigo 386, VI do CPP). Enquanto a Lei Maior estabelece que ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal
condenatória, o Pacto de São José da Costa Rica afirma que toda pessoa acusada
de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove
legalmente sua culpa. Daí a existência de diferentes terminologias para se
referir ao mesmo postulado, havendo quem prefira o termo princípio da presunção
de não culpabilidade.
Do estado de inocência decorrem duas regras básicas:[1] (a) a
regra probatória segundo a qual a dúvida na persecução criminal milita em favor
do réu (in dubio pro reo), e (b) a regra de tratamento de acordo com a qual a
prisão cautelar configura exceção.
Quanto à regra probatória, grande parte dos estudiosos limita
sua incidência após a deflagração do processo penal (depois do recebimento da
acusação), a fim de que o magistrado faça, no momento da sentença, a valoração
da prova.
Contudo, a valoração da prova ocorre também nos momentos
anteriores à sentença, a saber, instauração ou não do inquérito policial,
indiciamento ou não indiciamento, oferecimento da denúncia ou requerimento de
arquivamento, e recebimento ou não da denúncia. E nessas fases costuma-se falar
em princípio do in dubio pro societate como suposta variação da regra
probatória penal.
De acordo com o in dubio pro societate, em caso de dúvida
sobre a materialidade e autoria, estaria autorizada a investigação, o indiciamento
e a acusação, pois a incerteza favoreceria a sociedade em detrimento do
imputado. Significa dizer que se a autoridade policial tiver incerteza, deve
instaurar o inquérito e indiciar; se o promotor estiver indeciso, deve acusar;
se o juiz estiver confuso, deve receber a denúncia. Segundo essa corrente de
pensamento, não deveria o in dubio pro reo obstar o prosseguimento da
persecução.
Todavia, parece indevido esse afastamento do princípio da
presunção de inocência durante a persecução criminal, por contrariar a lógica
que rege o desenrolar da investigação e processo judicial e os stantards
probatórios exigidos.
O desenvolvimento da persecução penal (desde sua primeira
fase policial até sua segunda etapa judicial) tem início com a instauração do
inquérito policial e indiciamento, passando pelo oferecimento e recebimento
acusação, e chegando por fim à sentença. O avanço na persecução é diretamente
proporcional ao aumento do grau de convicção sobre materialidade e autoria
delitivas. Quanto mais constrangedora a ação estatal contra o imputado
(indiciamento, acusação ou condenação), maior o patamar de convencimento.
Nesse sentido, o standard probatório aumenta de um juízo de
possibilidade na instauração da investigação, para um juízo de probabilidade no
indiciamento e acusação, chegando por fim a um juízo de certeza (além de dúvida
razoável) [2] na condenação.
Em outros termos, o inquérito policial somente pode ser
iniciado mediante indícios mínimos (princípio de justa causa); o indiciamento e
a acusação só são autorizadas com indícios suficientes (justa causa); e a
condenação apenas se justifica com provas robustas.
Embora não se tenha alcançado um consenso quanto ao
significado preciso dos standards probatórios,[3] podemos falar em prova
crível, prova preponderante e prova para além de dúvida razoável, para exprimir
respectivamente o juízo de possibilidade, juízo de probabilidade e juízo de
certeza necessários nas diferentes fases da persecução criminal.
A probabilidade percebe os motivos convergentes e divergentes
e os julga dignos de serem levados em conta se bem que mais os primeiros e
menos os segundos. A certeza acha, ao contrário, que os motivos divergentes da
afirmação não merecem racionalmente consideração, e por isso, afirma.[4]
O que precisa ficar claro é que, havendo dúvidas sobre a
existência de indícios mínimos de materialidade e autoria, não se deve
instaurar o inquérito policial. E se for incerta a presença de indícios
veementes do crime e de seu autor, o indiciamento e a acusação não devem ser
feitas. A dúvida, portanto, continua beneficiando o imputado, por aplicação do
in dubio pro reo.
Por isso mesmo já há vozes na doutrina e nos Tribunais
Superiores se insurgindo contra o in dubio pro societate:
Percebe-se a lógica confusa e equivocada ocasionada pelo
suposto “princípio in dubio pro societate”, que, além de não encontrar qualquer
amparo constitucional ou legal, acarreta o completo desvirtuamento das
premissas racionais de valoração da prova.[5]
Por mais que se queira propalar a máxima de que, no átrio da
ação penal, teria força a máxima in dubio pro societate, em verdade, tal
aforisma não possui amparo legal, nem decorre da lógica do nosso sistema
processual penal, constitucionalmente orientado. A tão só sujeição ao juízo
penal já representa, per se, um gravame, cuja magnitude Carnelutti já
dimensionava como verdadeira sanção. Desta forma, é imperioso que haja razoável
grau de convicção para a submissão do indivíduo aos rigores persecutórios.
Trata-se de uma das fases do escalonamento da cognição, que se inicia pelo
indiciamento, passa pelo recebimento da acusação e se ultima com a sentença,
recebendo a pá de cal com o trânsito em julgado. [6]
Afirmar, simplesmente, que a pronúncia é mera admissibilidade
da acusação e que estando o Juiz em dúvida aplicar-se-á o princípio do in dubio
pro societate é desconhecer que num País cuja Constituição adota o princípio da
presunção de inocência torna-se heresia sem nome falar em in dubio pro
societate.[7]
Isso não se confunde, obviamente, com o in dubio pro
societate. Não se trata de uma regra de solução para o caso de dúvida, mas sim
de estabelecer requisitos que, do ponto de vista do convencimento.[8]
Que fique bem claro que a inexistência do princípio do in
dubio pro societate não traduz a exigência de certeza para investigar, indiciar
ou acusar, mas apenas a não admissibilidade da utilização da máxima como
artimanha para camuflar o não atingimento do standard probatório. A ausência de
dúvidas ou a incerteza em baixo patamar (com inverossimilhança da versão
defensiva) persiste sendo reclamada somente para a condenação.
Também convém salientar que negar a existência do in dubio
pro societate não significa deixar a sociedade desprotegida. Pelo contrário,
quando se impede a deflagração e o desenvolvimento de persecuções penais
temerárias, os direitos fundamentais dos indivíduos são protegidos e a
coletividade ganha com um sistema mais racional e justo. No Estado de Direito,
o estado de inocência deve reger qualquer etapa da persecução penal, servindo
de norte na atuação dos agentes públicos e de proteção para os cidadãos contra
o arbítrio estatal.
Nessa vereda, é preciso que as deliberações do delegado de polícia
(ao iniciar o inquérito ou indiciar), do promotor (ao acusar) e do juiz (ao
receber a denúncia ou pronunciar) estejam fundamentadas na existência do lastro
probatório exigido, não podendo a dúvida autorizar o avanço da atividade
persecutória estatal.
Outrossim, o Ministério Público deve cessar a comum prática
de acusar sem provas suficientes, sob o argumento de que durante a ação penal
serão colhidos os elementos necessários. Até porque o processo penal costuma
seguir a sorte da investigação, apenas chancelando as provas cautelares e
irrepetíveis (com a formalização do contraditório diferido) e repetindo as
oitivas sob o crivo do contraditório (com sua transformação de elementos
informativos em probatórios).
A discussão sobre a valoração da prova certamente é
importante,[9] porém a criação de princípio sem amparo legal em nada contribui
para o avanço do debate.
1 TORRES,
Jaime Vegas. Presunción de inocência y prueba em el processo penal. Madrid: La
Ley, 1993, p. 35.
2 artigo
386, VI do CPP; STF, AP 470, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 22/04/2013; STF, AP
676, Rel. Min. Rosa Weber, DJ 17/10/2017; STF, HC 83.947, Rel. Min. Celso de
Mello, DJ 07/08/2007.
3 GARDNER,
Thomas J; ANDERSON, Terry M. Criminal evidence: principles and cases. 2010.
4 MALATESTA,
Nicola. A lógica das provas em matéria criminal. São Paulo: Conan, 1995, p. 61.
5 STF, ARE
1.067.392, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 26/03/2019.
6 STJ, HC
175.639, Rel. Min Maria Thereza de Assis Moura, DJ 20/03/2012.
7 TOURINHO
FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado. São Paulo:
Saraiva, 2010. p. 79.
8 BADARÓ,
Gustavo Henrique Righi Ivahi. Ônus da prova no processo penal. São Paulo, RT,
2004, p. 390-391.
9 KNIJNIK,
Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Rio de Janeiro>
Forense, 2007. p. 6
Fonte:CONJUR