Cenário 1. O ladrão que se disfarçou de “cliente”
Um sujeito cujas iniciais são EJF foi processado por furto,
duas vezes qualificado por usar meio fraudulento. O fato ocorreu no interior do
RS. Em dois supermercados diferentes, EJF tentou furtar barras de chocolate e
um litro de whisky (sobrevalorizado no auto respectivo), tudo avaliado, nos
dois fatos, em R$ 82,00. Em face da vigilância do supermercado, EJF foi detido
e as mercadorias apreendidas na hora.
O que impressiona é que o promotor denunciou-o por furto
consumado. Ah, e, claro, com a qualificadora de “fraude”. Afinal, o indivíduo
“fez-se passar por cliente”. E isso dobra a pena. Ao fim e ao cabo, a juíza
desclassificou o crime para tentativa, mas qualificado. Rejeitou a
insignificância e tascou-lhe a pena de 3 anos e 2 meses de prisão mais multa.
Detalhe: o promotor não esteve na audiência de instrução. Portanto, sequer
houve acusação stricto sensu.
A juíza fez uma longa sentença para justificar essa
condenação. Minha pergunta: como é essa coisa de “se fazer passar por cliente”?
Será que os clientes de um supermercado têm um modo próprio de se vestir e os
ladrões, não? Logo, se o ladrão “se faz passar por um cliente”, a pena do furto
dobra. Mais ainda, a denúncia diz, no frontispício, que a ação de EJF causou
prejuízo ao estabelecimento. Como assim, se toda a mercadoria foi apreendida,
conforme o auto de fls (adoro a frase “auto de folhas”)?
Poderia, aqui, elencar centenas ou milhares de casos desse
tipo que ocorrem no vasto território de Pindorama. E o braço longo e firme do
direito penal, manejado pelo Ministério Público e Magistratura (e pala polícia,
seletivamente), é duro e firme... contra os pobres.
Contra a patuleia.
E isso é histórico. Sentenças desse tipo são
“paradigmáticas”. Por tentar furtar chocolates e whisky, a pena é maior do que
se associar para cometer crimes.
Cenário 2. A sonegação de tributos e a isenção de pena
Historicamente, em terrae brasilis nunca se tratou os
chamados crimes de colarinho branco como se tratam os crimes do “andar de
baixo” cometidos pelos patuleus. Para fins de mera exemplificação da asserção,
a Lei 4.729/65 estabelecia penas de detenção de 6 meses a 2 anos ao crime de
sonegação fiscal. Ou seja, a desproporcionalidade era tanta que às condutas que
configuravam crimes-meio para a prática da sonegação fiscal (tais como a
falsificação e o uso de documento falso) era cominada, no Código Penal, sanção
autônoma bastante superior à cominada à pratica do crime-fim. Então, apenas em
1990, a Lei 8.137 agravou as penas, tendo sido, contudo, o aumento da sanção
acompanhado da previsão da extinção da punibilidade ante o pagamento do tributo
antes do recebimento da denúncia.
Na (des)proteção da ordem tributária, em retrocessos e
avanços legislativos, chegou-se ao artigo 9º da Lei 10.684/03 em que se
determina a suspensão da pretensão punitiva — com o parcelamento — e a extinção
da punibilidade —com o pagamento dos débitos oriundos de tributos e de
contribuições sociais. Em caso emblemático, quando do julgamento de Marcos
Valério — Recurso Especial 942.769 – MG (2007/0046519-5), o Superior Tribunal
de Justiça decidiu pela extinção da punibilidade de crime de sonegação fiscal
pelo pagamento das parcelas não recolhidas em momento posterior ao recebimento
da denúncia, consagrando o entendimento que o pagamento do tributo a qualquer
TEMPO enseja o fim da possibilidade de responsabilização penal.
O (mero)
parcelamento do débito oriundo de crimes contra a ordem tributária e
previdência extingue a punibilidade (artigo 9º da Lei 10.684/03), mas ainda se
resiste em estender semelhante benefício aos autores de furto (em que se restitui
a res furtiva). Fui o primeiro a escrever sobre isso, em 1990. E o TJ-RS acatou
parecer de minha lavra por diversas vezes, aplicando isonomicamente a extinção
da punibilidade dos crimes de sonegação para os casos de furto sem prejuízo
(com devolução da res furtivae).
Pronto. Esse é o contraponto. Tudo isso acontece no mesmo
país. Ah: o Ministério Público (estadual), que denunciou o sujeito dos
chocolates e depois nem compareceu à audiência, emitiu parecer favorável (no
âmbito federal) à extinção de punibilidade de Marcos Valério.
Vejam: a lei diz que a devolução deve ser feita antes do
recebimento da denúncia... Mas, mesmo feita depois, vale. Para o andar de cima,
é claro. Já no caso de furto, o acusado pode devolver que nada lucrará. No
máximo, por vezes, ser-lhe-á aplicado o artigo 16 do Código Penal.
Origens disso? A crise do Direito (Penal) e a Constituição:
o seu caráter estamental
Partirei de uma tese. Em terrae brasilis, o poder político
se articula a partir de um Estado que é patrimonialista em seu conteúdo e
estamental em sua forma. Os estamentos, vistos a partir de Faoro, mostram-nos
que, em determinadas circunstâncias, o Brasil é ainda pré-moderno. Temos uma
sociedade de estamentos, que “ficam de fora” da classificação tradicional de
classes sociais. Ninguém faz lei contra si mesmo! Só para os outros.
Há, assim, brasileiros “diferentes” de outros brasileiros.
Essa constatação assume ares dramáticos, quando percebemos que, passados 25
anos desde a promulgação da Constituição, não há indicativos de que tenhamos
avançado no sentido da superação da crise por que passa a operacionalidade do
Direito. Persistimos atrelados a um paradigma penal de nítida feição
liberal-individualista, corrompido e potencializado pela estrutura
patrimonialista e estamental do Estado brasileiro. Isto é, preparados
historicamente para o enfrentamento dos conflitos de índole interindividual
(Caio versus Tício mais o idiota do Mévio), não engendramos, ainda, as
condições necessárias para o enfrentamento dos delitos de feição
transindividual (bens jurídicos supraindividuais), que compõem majoritariamente
o cenário desta fase de desenvolvimento da sociedade brasileira.
Um pouco de história faz bem. Outorgada a Constituição em
1824, permanecemos com as Ordenações Filipinas (talvez o DIPLOMA penal mais
emblemático em termos de criminalização da pobreza, eis que estabelecia ao fim
de cada tipo uma pena diferente para cada “qualidade” de autor) até o ano de
1830, quando foi editado o Código Criminal, nitidamente direcionado a escravos
e congêneres (aliás, havia uma inconstitucionalidade que jamais pôde ser
decretada: a Constituição aboliu as penas cruéis, já o Código impunha a
conversão de qualquer pena distinta da morte ou das galés em açoites quando o
condenado fosse escravo). A seletividade penal também se fazia clara na
desproporção das penas entre os crimes “de senzala” e os da “casa grande”.
Basta ver que as lideranças do crime de insurreição (reunião de vinte ou mais
escravos objetivando a obtenção da liberdade por uso da força) tinham para si
reservadas a pena capital, enquanto às do de rebelião (reunião de mais de vinte
mil pessoas de uma ou mais povoações visando o cometimento de crimes como
tentar destruir o Império, provocar nação estrangeira a declarar guerra contra
o Brasil e outras) se destinava prisão perpétua. Como isso é atual, não?
Proclamada a República, já no ano seguinte tínhamos um novo
Código, agora dirigido aos ex-escravos e congêneres. Mais uma vez “se olvidou”
dos setores empoderados, afinal, centenas de anos de escravidão marcaram
indelevelmente o sentido de classe do direito, em especial o direito penal. Por
isso, a ausência histórica de punições mais efetivas contra crimes contra o
erário público, corrupção entre outros. E não esqueçamos a relevante
circunstância de que criminalizar a pobreza é um eficaz meio de controle
social. É nesse TEMPO que têm vez os ditos “crimes contra a ordem pública”, tais
como a vadiagem, a embriaguez, a mendicância e a capoeira. Todos seguindo a
mesma lógica moralista e com o mesmo intuito de reprimir os elementos
destoantes da patuleia que se recusassem (ou não conseguissem) à inserção no
sistema.
Mutatis mutandis, a preocupação maior sempre foi com a
proteção da propriedade privada e dos interesses lato sensu das camadas
dominantes, questão que ficou bem visível no Código de 1940, que surge em pleno
Estado Novo, agora com a preocupação de atingir a um outro tipo de “clientela”:
um Brasil que aos poucos se urbanizava e que passava pela segunda fase do
processo de substituição de importações (não esqueçamos que até 1930 o Brasil
se sustentava na base da economia agrário-exportadora). Inspirado no modelo
fascista, o Código Penal apontou efetivamente para o “andar de baixo”, com
especial preocupação com os crimes contra o Estado, o “livre desenvolvimento”
do trabalho, a “proteção dos costumes” entre outros, mas sempre dando ênfase à
propriedade privada: o furto recebeu uma qualificadora de chave falsa, uma vez
que as pessoas guardavam dinheiro em suas casas, problemática também presente
(e protegida) pela qualificadora da escalada (os muros grandes não cercavam os
cortiços do proletariado. A pena fora duplicada (2 a 8 anos). Vejam: aqui está
a qualificadora da fraude aplicada ao EJF há poucos dias no RS...
Nem quero falar, aqui, da Lei das Contravenções Penais, um
behaviorismo criminal. E que continua em vigor. Mas que o porteiro dos
tribunais já deveria ter declarado como não recepcionada. Bingo. Aqui é
interessante notar o modo como aparece o componente de “classe” no direito
criminal: enquanto se punia criminalmente a mendicância, também se punia, na
área cível, o pródigo; com isso, cria-se um elo entre o mendigo e o pródigo; o
primeiro denuncia o sistema injusto, a divisão em classes (como não poderia ser
diferente, era requisito subjetivo do tipo que o autor não tivesse renda ou
meios para o próprio sustento, o que permite concluir que era um crime próprio,
unicamente possível de ser praticado por pobres) entre outros; já o segundo
decepciona o sistema, d’onde se pode dizer que o pródigo é o lumpen da
burguesia nacional). Escrevi isso pela primeira vez em 1986.
Ao (atual) Código Penal de 1940 foram sendo acrescidas leis,
sendo que parcela considerável sem qualquer sistematicidade. Na medida em que o
crime se organizava e mudava de feição, foi-se legislando de forma ad hoc,
como, por exemplo, a lei do Colarinho Branco (Lei 7492/86), a da Lavagem de
Dinheiro (Lei 9.613/98), do Crime Organizado (Lei 9.034/95), dos Crimes
Hediondos (Lei 8072/90). E por aí afora.
Confissão: sim, criminalizamos a pobreza e mantemos um
direito penal de “classe”
Já é de certa forma um lugar-comum qualificar o Direito
Penal como conservador e ideológico, típico de um modelo de Estado em que a
produção das leis (e do Direito em geral) segrega a pobreza, afastando-a da
sociedade civil (composta por pessoas “de bem”?), a pretexto de garantir a
almejada “paz social”. Não há, pois, como dizer que o Direito Penal “clássico”
não seja mesmo refém de um paradigma liberal-individual-patrimonialista, que o
colocou a serviço da proteção do patrimônio, da propriedade e, sobremodo, dos
proprietários.
Ora, se nos quadros de um modelo de Direito Liberal fazia
algum sentido o privilégio da defesa do patrimônio e segurança individuais,
agora nós devemos (deveríamos) ter em mente a presença de novos bens jurídicos.
Afinal, não há (mais) oposição entre Estado e sociedade, pois não? A defesa do
Estado (isto é, de um Estado que passa da condição de “inimigo” para a de
“amigo dos direitos fundamentais”, bem entendido) é a defesa da cidadania. E,
no interior dessa “reviravolta”, é evidente que as baterias do Direito Penal
deve(ria)m ser voltadas para aquelas condutas que se coloquem como entrave à
concretização do projeto constitucional. Nesse contexto, desvela-se (em sentido
hermenêutico) uma nova criminalidade a ser combatida, aquela que atinge bens
jurídicos supra individuais, que afetam toda a coletividade (sonegação, corrupção,
lavagem entre outros).
Nesse sentido, vale lembrar que Constituição efetivamente
determina ao Legislativo e ao Judiciário que orientem o seu agir para esta
direção, dando proteção suficiente aos bens jurídicos que foram catalogados em
destaque (não só a ordem econômico-financeira, mas também o meio também o meio
ambiente e a infância e juventude, por exemplo). E, afinal, se o Direito Penal
é a ultima ratio, a mais grave das redes sancionatórias do aparato estatal, o
mínimo que se espera é que trate desigualmente os crimes desiguais. Contudo, a
“baixa constitucionalidade” do Legislativo e da comunidade jurídica faz com que
a sua almejada integridade seja uma quimera. Uma rápida pesquisa nos principais
sítios eletrônicos dos Tribunais do Brasil nos dá provas incontornáveis disso.
Não vou traçar uma analítica da incongruência dos tipos
penais. E nem do modo como o Ministério Público e o Judiciário olham para isso.
Basta referir, neste momento, que ao crime de furto qualificado é cominada pena
abstrata muito superior à sanção prevista ao crime de lesão corporal de
natureza grave. Se para o primeiro a pena em abstrato varia de 3 a 8 anos de
reclusão, no segundo caso limita-se em 1 a 5 anos. Conclusão: a subtração de
bem patrimonial do interior da residência da vítima realizada por mais de uma
pessoa implica sanção superior à ofensa à integridade corporal de que resulte
debilidade permanente de membro, sentido ou função, ou ainda que coloque em
perigo a vida da vítima. Aliás, o crime de adulteração de chassi ou sinal de
veículo automotor, fruto de eficiente lobby das seguradoras de veículos, tem um
apenamento de 3 a 6 anos de reclusão e multa. Essa pena mínima é maior do que
às cominadas aos crimes de lesão corporal permanente com perda de membro, de
instigação ao suicídio, se vier a ocorrer a morte, e de infanticídio (2 anos em
todos). E assim por diante (explanarei isso em outro dia).
Como conter o gozo da sociedade sem ser tirânico?
O legislador não pode se guiar por pragmatismos
inconsequentes que destroem a diferença. Esse pragmatismo vira ceticismo,
porque, na medida em que cada ato humano tem um conteúdo fático, torna-se
absolutamente problemático o processamento da validade desse ato. Com efeito,
se elimino o elemento diferencial que identifica cada ato (valorado como
delito), caio no cinismo, uma vez que “tanto faz qual o delito que cometo”.
Isso porque, muito embora o direito penal deva ser utilizado apenas como ultima
ratio, parece evidente que existem situações e hipóteses em que o bem jurídico
não estaria suficientemente protegido, mormente em uma comparação com outras
formas de proteção. Deveria causar espanto à comunidade jurídica o fato de o
legislador não abrir mão do Direito Penal para combater delitos menos
relevantes — no que diz respeito a sua danosidade social — como o furto e
apropriação indébita, e, nos casos de crimes mais graves como os de cariz supra
individual, agir de modo absolutamente contrário. E parece que o Projeto do
novo Código Penal vai nessa mesma linha. Como é difícil nos desvencilharmos de
nossa tradição patrimonialista-estamental...!
Por fim, qual é o papel do Direito Penal? O direito penal
não trata de “coisas boas”. Isso é evidente. Nem é instrumento de transformação
da sociedade ou do indivíduo. A concepção de um direito garantidor é uma
conquista da humanidade. Mas, em tempos de novos paradigmas, ficamos no
entremeio de uma aporia: os penalistas (e não somente eles) são praticamente
uníssonos (com exceção dos discursos law and order) em apontar o direito penal
como discriminatório, seletivo, estigmatizador e “protetor dos interesses das
camadas dominantes”. Aliás, já não há qualquer novidade em dizer isso.
Talvez tenhamos que, enfim, enfrentar de vez essa
criminalização da pobreza e passar a falar da “pobreza da criminalização” dos
setores que, de fato, colocam em xeque os bens jurídicos mais relevantes. E,
para tanto, não é preciso pensar em estender as graves penas aos crimes do
“andar de cima”. A aplicação da Constituição no plano penal por certo não exige
que se use o direito penal como uma vingança dos setores dominados da sociedade
contra a histórica criminalização dos pobres. Parece evidente que não. Mas, com
certeza, a Constituição não abre mão do direito penal.
Neste curto período de democracia, já deveríamos ter feito
muito mais. Os juristas não são legisladores. Mas a doutrina e a jurisprudência
podem e devem ter um papel muito mais relevante nesse processo de
institucionalizar a integridade, a coerência e a igualdade no direito, em
especial no Direito Penal, que lida com conflitos resultantes de resquícios de
um país de modernidade tardia. E ainda não se encontrou uma explicação maior
para a criminalidade do que as disparidades sociais. Talvez por isso a
criminalidade de países como a Suécia não seja maior do que a criminalidade na
Somália, como já bem explicava Alessandro Baratta: de uma ponta a outra, as
distâncias sociais são muito pequenas!
O grande desafio talvez seja — para utilizar uma frase do
psicanalista Alfredo Jerusalinsky — “como conter o gozo da sociedade sem ser
tirânico”. É nesse fio da navalha que caminha o
jurista/penalista/constitucionalista. É verdade que, quando a Constituição
determina que um dos seus objetivos da República é erradicar a pobreza, não
significa que isso será alcançado utilizando o Direito Penal; mas, convenhamos,
isso também não quer dizer que a pobreza continue a ser criminalizada como se
estivéssemos no século XIX ou nos anos 1940.
Certamente alguma coisa mudou com o advento do novo
paradigma constitucional! Espero que o novo Código Penal leve em conta todas
essas questões aqui discutidas. Espero que, passados alguns anos de vigência do
novo Código Penal (que não se sabe quando vem), não precisemos dar (ainda)
razão ao camponês salvadorenho e dizer que “todavia la ley es como la
serpiente; solo pica al descalzos”. A palavra todavia (que, em espanhol, quer
dizer “ainda”, foi por mim colocada para dar um efeito temporal à discussão...!
Post scriptum:
Não quero que os sonegadores sejam presos; não prego a
prisão como solução. Somente quero que os demais crimes contra o patrimônio
(como o furto e estelionato) tenham o mesmo tratamento. Só isso! Na verdade,
quero isonomia no tratamento de quem comete crimes. E que o Ministério Público
e o Judiciário ajam com coerência e integridade. É pedir muito?