Samir Oliveira
Para Sul 21
A lei 13.343/06, que baliza as diretrizes para a repressão
às drogas ilícitas no Brasil, acaba, na prática, gerando a punição de usuários
de maconha como se fossem traficantes, de acordo com a explicação do professor
Salo de Carvalho, doutor em Direito e autor do livro “A política criminal de
drogas no Brasil”. O especialista debateu o assunto na noite desta quarta-feira
(14) em um evento promovido pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande
do Sul (CRP-RS), juntamente com ativistas que lutam contra a proibição da
cannabis no país.
Em seu pronunciamento, Salo observou que a lei de drogas
reúne os dois pólos mais distantes da legislação penal: a pena mais branda
possível, que elimina a necessidade de prisão, e uma pena extremamente
rigorosa, que pune com um mínimo de 5 e um máximo de 15 anos de cadeia. Em
ambos os casos, existe uma linha tênue e sujeita a diversas interpretações
subjetivas – que, na concretude da vida, acaba sendo mediada por um corte de
classe social – que separa os réus de incorrerem em um ou em outro tipo penal.
“Temos na nossa lei de drogas os dois extremos de todo o
complexo jurídico-penal brasileiro. Temos a resposta penal mais branda possível
e o regime jurídico mais grave de todos, com possibilidades processuais
totalmente díspares”, analisa, referindo-se aos artigos 28 e 33 da lei
13.343/06.
Salo de Carvalho informa que o artigo 28 estabelece o único
crime na legislação penal brasileira que não prevê punição mediante o
encarceramento: “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou
trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo
com determinação legal ou regulamentar”, conforme o texto da norma.
Se um usuário de maconha for detido pela polícia em alguma
dessas situações, ele estará sujeito a “advertência sobre os efeitos das
drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e “medida educativa de
comparecimento a programa ou curso educativo”.
Entretanto, o professor alerta para o outro aspecto da lei:
seu lado totalmente punitivista, que prevê pena de 5 a 15 anos de prisão para
quem for flagrado exercendo 18 condutas: “importar, exportar, remeter,
preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em
depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar
a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em
desacordo com determinação legal ou regulamentar”.
Ele chama a atenção para o fato de que todas as condutas
previstas no artigo 28 se repetem no artigo 33 da lei. “Guardar maconha em casa
é uma conduta que pode ser considerada tanto um crime hediondo como pode sofrer
apenas uma advertência verbal”, exemplifica, qualificando a distorção do texto
legislativo, que acaba “pulverizando essas condutas com condutas típicas que
são do comércio (de drogas)”.
Salo de Carvalho entende que isso faz com que a lei “nos
remeta a um universo totalmente cinza em termos de clareza típica sobre o que é
tráfico de drogas”. E a interpretação que determinará se a droga apreendida com
o usuário era destinada a consumo pessoal ou a tráfico fica a critério dos
juízes, baseados em informações que recebem do Ministério Público (MP), que,
por sua vez, são coletadas pela Polícia Civil, através das abordagens feitas
pela Brigada Militar nas ruas.
Essa interpretação obedece à orientação dada pelo parágrafo
segundo do artigo 28 da lei de drogas, que diz que “para determinar se a droga
destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da
substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às
circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do
agente”.
Carvalho qualifica essas determinações como uma “não-regra”.
“Isso é uma não-regra. É de uma porosidade tal que não diz nada. Quem é que, no
dia a dia da repressão policial, vai ser enquadrado no artigo 28 ou no artigo
33? É uma carta aberta e um cheque em branco para a autoridade policial
negociar a imputação”, lamenta.
Para o especialista, em última instância, esse dispositivo
da legislação “gera, lá na ponta, um processo de criminalização da pobreza”.
Ele citou dados de uma pesquisa realizada por acadêmicos da UFRJ e da UNB, que
analisaram, em 2009, o perfil da pessoa encarcerada por tráfico de drogas no
Rio de Janeiro e em Brasília. “55% eram réus primários, 94% estavam desarmados
no momento da prisão e 60% estavam sozinhos”, revelou, acrescentando que “a
imagem que temos do tráfico não é a imagem posta em lei”.
Ativistas consideram que conscientização sobre o tema vem
crescendo, apesar de desafios ainda permanecerem
Para Giuliano Falcetta, integrante do Growroom, os usuários
que cultivam sua própria maconha no Brasil começaram a “sair do armário” e
buscar um debate amplo sobre o tema. “O esclarecimento está sendo maior, temos
mais espaço para discutir. É importante que possamos avançar na defesa do
autocultivo”, entende.
Ele disse que o grupo existe desde 2002 e hoje é o maior
fórum para tratar de autocultivo de maconha na América Latina, com 60 mil
integrantes. “Temos a convicção de que o autocultivo trabalha fortemente numa
postura de redução de danos sociais”, pondera.
O ativista acredita que o tema “deve ser debatido sem
hipocrisia”, para que as pessoas “possam se sentir empoderadas” e seguras de
que, ao fumar maconha, não estão cometendo nenhum crime. “A opção por fumar ou
não é pessoal. O ser tem a liberdade de optar pelo que é interessante a ele.
Com a proibição, não temos a possibilidade de estudar e fazer pesquisas com
maior credibilidade. Estamos trabalhando em cima de uma guerra às drogas que
tem 30 anos de falência”, critica.
Geison La Motta, do coletivo Princípio Ativo, recorda que,
em 2006, 42 pessoas foram detidas por tentar realizar uma marcha pela
legalização da maconha em Porto Alegre. “De toda repressão que sofremos naquela
época até hoje, percebeis que as pessoas estão buscando mais informações.
Antes, ninguém queria conversar”, compara.
Ele frisa que ainda existem muitos mitos a respeito da
maconha e, inclusive, uma limitação quando se fala de suas múltiplas
utilidades. “A maconha não é só THC. Tem diversos outros componentes com muitas
possibilidades de uso nas questões medicinal e industrial. O debate não é
apenas sobre usar ou não”, reflete.
Usuário medicinal responde a processo foi enquadrado no
artigo 33 por plantar maconha
No meio de um pesado tratamento contra um câncer na
garganta, Alexandre Tomás resolveu importar sementes de maconha da Holanda e
começar a plantar a cannabis para uso medicinal em seu sítio. Entretanto, uma
denúncia anônima de vizinhos acabou levando a Brigada Militar ao local e em um
processo judicial onde o Ministério Público resolveu enquadrar o usuário no
artigo 33 da lei de drogas.
A juíza que analisou o processo na primeira instância acabou
indeferindo a acusação, acatando a defesa que foi elaborada por Salo de
Carvalho. Entretanto, o MP recorreu ao Tribunal de Justiça. “A polícia arrombou
a minha casa, levou minhas sementes e minhas facas de cozinha, dizendo que eram
armas brancas. Levaram o remédio que encontrei para minha saúde e estou
respondendo ao processo até hoje. Com a regulamentação da maconha, eu teria
passado de ‘traficante’ e usuário medicinal”, observa.
Atualmente, o caso está tramitando no Superior Tribunal de
Justiça (STJ). “A questão é para discutir se é o artigo 28 ou o 33”, resume
Salo. O advogado informa que, no mesmo processo, a investigação da Polícia
Civil acabou solicitando, também, o indiciamento dos brigadianos envolvidos na
ação por abuso de autoridade. Mas o MP acabou arquivando essa denúncia, optando
por prosseguir apenas com a acusação contra Alexandre.
Fonte: Sul 21